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ARTIGO
A fé do povo ou no povo?
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Dois filmes, atualmente em cartaz no país, são documentários
brasileiros sobre religião: "Fé" e
"Santo Forte". A religião talvez seja a coisa mais importante que
existe na sociedade. Religião vem
de "religare", aquilo que liga a comunidade, a tribo, o país.
O cimento espiritual da cultura
é a religião, de modo que pode ser
tanto o ópio do povo quanto a vitamina para o fraco. Depende de
como funciona a fé em uma determinada sociedade.
No caso do Brasil, os melhores
cientistas e artistas são pessoas
que se dedicam a refletir sobre a
particularidade do nosso sentimento religioso.
Somos o país da figa e da cruz,
do Omolu e do Padre Eterno, de
Ogum e de São Jorge, de Exu e São
Judas Tadeu.
Misturamos santos católicos e
orixás africanos com reminiscências indígenas. Cruzamos divindades de origem diversa. É comum ver preto macumbeiro exigindo exéquias católicas na hora
da morte, assim como é frequente
assistirmos a pai de família igrejeiro pedindo ao candomblé um
bom casamento para a filha.
O fato é que corre muita superstição nas veias do povo brasileiro.
Herdamos esse patrimônio de
Portugal.
O número 13 dá azar. Não convém passar por debaixo da escada. Titica de galinha cura espinha.
Acredita-se que simpatia dá jeito
no câncer. Cão uivando é mau
agouro.
Os estudiosos designam a mistura de crendices e religiões pelo
termo sincretismo. Ou seja: amalgamamos crenças heterogêneas.
Somos crédulos. Padre Antônio
Vieira dizia que o medo é crédulo.
Nosso medo primário é morrermos sem sepultura. Sem sepultura surge o espectro do morto vivo.
Alma penada. Zumbi.
Nossa tendência é acreditar em
tudo: tanto na eficácia do despacho ou do ebó quanto no mistério
da Santíssima Trindade. É difícil
estabelecer com precisão em que
o povo brasileiro não acredita. Temos uma feijoada dentro da nossa alma mística.
Há quem diga que o sentimento
religioso no Brasil é unificado pelo símbolo da cruz. Cristo na cruz
e fora da cruz. Em Minas Gerais é
comum ouvir a oblação a São
Cristinho, o diminutivo do convívio íntimo.
Engano supor que a indústria
ou a culinária do McDonald's faça
desaparecer o sentimento tumultuário da religiosidade entre nós.
Muda-se a forma, mas não o
conteúdo.
Basta observar o que está acontecendo com a incorporação da
parafernália acústica pop pela renovação carismática, na qual o
ouvido do fiel é o ouvido discoteca, aglutinando-se em torno de
um "Xoumissa", espécie de performance catártica que mistura
samba, futebol e Carnaval.
Ao que tudo indica, é pela gestuália do barulho que se ouve a
voz da divindade.
Até mesmo ateus convictos se
garantem diante da ameaça assombrosa: quem não acredita em
Deus no Brasil morre louco.
Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz
de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo), entre outros
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