São Paulo, Sexta-feira, 10 de Dezembro de 1999


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ARTIGO
A fé do povo ou no povo?

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha


Dois filmes, atualmente em cartaz no país, são documentários brasileiros sobre religião: "Fé" e "Santo Forte". A religião talvez seja a coisa mais importante que existe na sociedade. Religião vem de "religare", aquilo que liga a comunidade, a tribo, o país.
O cimento espiritual da cultura é a religião, de modo que pode ser tanto o ópio do povo quanto a vitamina para o fraco. Depende de como funciona a fé em uma determinada sociedade.
No caso do Brasil, os melhores cientistas e artistas são pessoas que se dedicam a refletir sobre a particularidade do nosso sentimento religioso.
Somos o país da figa e da cruz, do Omolu e do Padre Eterno, de Ogum e de São Jorge, de Exu e São Judas Tadeu.
Misturamos santos católicos e orixás africanos com reminiscências indígenas. Cruzamos divindades de origem diversa. É comum ver preto macumbeiro exigindo exéquias católicas na hora da morte, assim como é frequente assistirmos a pai de família igrejeiro pedindo ao candomblé um bom casamento para a filha.
O fato é que corre muita superstição nas veias do povo brasileiro. Herdamos esse patrimônio de Portugal.
O número 13 dá azar. Não convém passar por debaixo da escada. Titica de galinha cura espinha. Acredita-se que simpatia dá jeito no câncer. Cão uivando é mau agouro.
Os estudiosos designam a mistura de crendices e religiões pelo termo sincretismo. Ou seja: amalgamamos crenças heterogêneas. Somos crédulos. Padre Antônio Vieira dizia que o medo é crédulo. Nosso medo primário é morrermos sem sepultura. Sem sepultura surge o espectro do morto vivo. Alma penada. Zumbi.
Nossa tendência é acreditar em tudo: tanto na eficácia do despacho ou do ebó quanto no mistério da Santíssima Trindade. É difícil estabelecer com precisão em que o povo brasileiro não acredita. Temos uma feijoada dentro da nossa alma mística.
Há quem diga que o sentimento religioso no Brasil é unificado pelo símbolo da cruz. Cristo na cruz e fora da cruz. Em Minas Gerais é comum ouvir a oblação a São Cristinho, o diminutivo do convívio íntimo.
Engano supor que a indústria ou a culinária do McDonald's faça desaparecer o sentimento tumultuário da religiosidade entre nós.
Muda-se a forma, mas não o conteúdo.
Basta observar o que está acontecendo com a incorporação da parafernália acústica pop pela renovação carismática, na qual o ouvido do fiel é o ouvido discoteca, aglutinando-se em torno de um "Xoumissa", espécie de performance catártica que mistura samba, futebol e Carnaval.
Ao que tudo indica, é pela gestuália do barulho que se ouve a voz da divindade.
Até mesmo ateus convictos se garantem diante da ameaça assombrosa: quem não acredita em Deus no Brasil morre louco.


Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo), entre outros


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