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BERNARDO CARVALHO
O romance do romance
Num livro recém-publicado
em Buenos Aires, com textos
inéditos que Borges (1899-1986) e
Bioy Casares (1914-99) escreveram ou traduziram em colaboração, os dois argentinos dão uma
idéia invejável do quanto se divertiam juntos. Devem ter se escangalhado de rir, por exemplo,
ao aconselhar os aspirantes a escritores a evitar, entre outras coisas, "duplas de personagens grosseiramente díspares, como D.
Quixote e Sancho Pança ou Sherlock Holmes e Watson". No mesmo livro, cujo título ("Museo", ed.
Emecé) vem de uma compilação
de fragmentos literários que Borges e Bioy traduziam e publicavam em revistas nos anos 30 e 40,
há um trecho de "O Sonho do
Quarto Vermelho", de Cao Xueqin (pronuncia-se Tsao Shue
Tchin). O grande romance chinês
do século 18 estava entre os assuntos preferidos de "tardes e noites
de conversa" entre os dois amigos
escritores.
Numa resenha de 1937 sobre a
tradução alemã da obra de Cao
Xueqin, Borges escreve que "os
personagens secundários pululam e não sabemos ao certo quem
é quem. Estamos como que perdidos em uma casa de muitos pátios", para logo em seguida sentenciar: "Esses capítulos dão-nos
a certeza de um grande escritor.
(...) Uma desesperada carnalidade rege toda a obra. (...) Há uma
profusão de sonhos: mais intensos
porque o escritor não nos diz que
estão sendo sonhados e acreditamos que se trata de realidades,
até que o sonhador acorda".
"O Sonho do Quarto Vermelho"
(também conhecido como "O Sonho do Pavilhão Vermelho" ou
"A História da Pedra" -não há
tradução em português) conta o
amor impossível entre o protagonista e uma de suas primas, apaixonados desde a infância, tendo
como pano de fundo a ascensão e
a queda de uma família da alta
aristocracia. É um livro monumental. Tão incrível quanto o romance, no entanto, é a história
por trás dele, pois não parecem
ser poucas as coincidências entre
a ficção e a vida do autor, embora
pouco se saiba sobre ele.
Cao Xueqin nasceu por volta de
1715, numa família riquíssima de
representantes do imperador em
Nanquim, no sul da China. Seus
antepassados, colonos chineses na
Manchúria, foram capturados
pelos manchus, em 1621, e transformados em servos. Quando os
manchus conquistaram a China e
derrubaram a dinastia Ming, em
1644, alçaram seus servos chineses
a membros da corte. Precisavam
de homens de confiança de origem chinesa para exercer funções
estratégicas e vencer a resistência
local. Em 1728, porém, sob o terror do imperador Yongzheng, a
família de Cao Xueqin caiu em
desgraça. Os manchus já não precisavam dos serviços dos seus antigos servos chineses.
"O Sonho do Quarto Vermelho"
foi escrito entre 1740 e 1763, ano
da morte do autor, durante o período em que Cao Xueqin já vivia
nas piores condições, nos arredores de Pequim. O livro só foi publicado 30 anos depois. Nesse meio-tempo, circulou em cópias manuscritas, primeiro entre amigos e
membros da família do escritor e
depois entre uns poucos eruditos e
colecionadores. E foi ao longo
desses 30 anos que se desenrolou,
nos bastidores, um dos casos mais
romanescos de toda a história da
literatura.
As cópias manuscritas comercializadas entre alguns privilegiados após a morte do autor tinham
apenas 80 capítulos, e não os 120
da versão impressa de 1792, editada por Gao E e Cheng Weiyuan.
Os 40 capítulos finais são obra de
um anônimo. Mas isso foi relegado a segundo plano até 1927,
quando reapareceram os manuscritos, que traziam anotações nas
margens, em geral assinadas com
tinta vermelha por pelo menos
duas pessoas que sobreviveram a
Cao Xueqin, conheceram-no na
intimidade e testemunharam de
perto o que ele narrava no livro.
Até hoje, sinólogos tentam desvendar a identidade dos dois comentadores, que assinavam com
os pseudônimos Pedra de Tinta
Vermelha e Velha Tabuleta. O
primeiro, que morreu provavelmente dois anos depois do escritor, era próximo dele e tinha a
mesma idade. Podia ser um homem ou uma mulher, e talvez tivesse inspirado um dos personagens do romance. Seus comentários emocionados mostram uma
solidariedade dramática com o
autor morto na miséria e sugerem
um desfecho da história diferente
do que ocorre nos 40 capítulos finais da versão impressa de 1792,
que se tornou um best-seller no
século 19.
Depois da morte de Cao Xueqin, uma violenta perseguição
aos escritores tomou conta da
China. É possível que o indivíduo
que anotou os primeiros 80 capítulos sob o pseudônimo de Velha
Tabuleta, e que teria podido fornecer aos leitores o final sugerido
pelos comentários de Pedra de
Tinta Vermelha, não o tenha feito
por razões políticas, e que o tenha
até mesmo suprimido. É possível
que seja ele (talvez o próprio pai
de Cao Xueqin), que lamenta a
morte do escritor e de Pedra de
Tinta Vermelha em suas anotações, o autor anônimo dos 40 capítulos finais da versão impressa.
As hipóteses são tão borgianas
que é difícil supor que o autor de
"O Jardim de Caminhos que se
Bifurcam" não tenha percebido o
potencial romanesco, trágico e
policial da história. E é uma pena
que não tenha deixado, em forma
de ficção, a sua própria resposta
para um dos maiores mistérios literários de todos os tempos.
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