São Paulo, terça-feira, 10 de dezembro de 2002

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BERNARDO CARVALHO

O romance do romance

Num livro recém-publicado em Buenos Aires, com textos inéditos que Borges (1899-1986) e Bioy Casares (1914-99) escreveram ou traduziram em colaboração, os dois argentinos dão uma idéia invejável do quanto se divertiam juntos. Devem ter se escangalhado de rir, por exemplo, ao aconselhar os aspirantes a escritores a evitar, entre outras coisas, "duplas de personagens grosseiramente díspares, como D. Quixote e Sancho Pança ou Sherlock Holmes e Watson". No mesmo livro, cujo título ("Museo", ed. Emecé) vem de uma compilação de fragmentos literários que Borges e Bioy traduziam e publicavam em revistas nos anos 30 e 40, há um trecho de "O Sonho do Quarto Vermelho", de Cao Xueqin (pronuncia-se Tsao Shue Tchin). O grande romance chinês do século 18 estava entre os assuntos preferidos de "tardes e noites de conversa" entre os dois amigos escritores.
Numa resenha de 1937 sobre a tradução alemã da obra de Cao Xueqin, Borges escreve que "os personagens secundários pululam e não sabemos ao certo quem é quem. Estamos como que perdidos em uma casa de muitos pátios", para logo em seguida sentenciar: "Esses capítulos dão-nos a certeza de um grande escritor. (...) Uma desesperada carnalidade rege toda a obra. (...) Há uma profusão de sonhos: mais intensos porque o escritor não nos diz que estão sendo sonhados e acreditamos que se trata de realidades, até que o sonhador acorda".
"O Sonho do Quarto Vermelho" (também conhecido como "O Sonho do Pavilhão Vermelho" ou "A História da Pedra" -não há tradução em português) conta o amor impossível entre o protagonista e uma de suas primas, apaixonados desde a infância, tendo como pano de fundo a ascensão e a queda de uma família da alta aristocracia. É um livro monumental. Tão incrível quanto o romance, no entanto, é a história por trás dele, pois não parecem ser poucas as coincidências entre a ficção e a vida do autor, embora pouco se saiba sobre ele.
Cao Xueqin nasceu por volta de 1715, numa família riquíssima de representantes do imperador em Nanquim, no sul da China. Seus antepassados, colonos chineses na Manchúria, foram capturados pelos manchus, em 1621, e transformados em servos. Quando os manchus conquistaram a China e derrubaram a dinastia Ming, em 1644, alçaram seus servos chineses a membros da corte. Precisavam de homens de confiança de origem chinesa para exercer funções estratégicas e vencer a resistência local. Em 1728, porém, sob o terror do imperador Yongzheng, a família de Cao Xueqin caiu em desgraça. Os manchus já não precisavam dos serviços dos seus antigos servos chineses.
"O Sonho do Quarto Vermelho" foi escrito entre 1740 e 1763, ano da morte do autor, durante o período em que Cao Xueqin já vivia nas piores condições, nos arredores de Pequim. O livro só foi publicado 30 anos depois. Nesse meio-tempo, circulou em cópias manuscritas, primeiro entre amigos e membros da família do escritor e depois entre uns poucos eruditos e colecionadores. E foi ao longo desses 30 anos que se desenrolou, nos bastidores, um dos casos mais romanescos de toda a história da literatura.
As cópias manuscritas comercializadas entre alguns privilegiados após a morte do autor tinham apenas 80 capítulos, e não os 120 da versão impressa de 1792, editada por Gao E e Cheng Weiyuan. Os 40 capítulos finais são obra de um anônimo. Mas isso foi relegado a segundo plano até 1927, quando reapareceram os manuscritos, que traziam anotações nas margens, em geral assinadas com tinta vermelha por pelo menos duas pessoas que sobreviveram a Cao Xueqin, conheceram-no na intimidade e testemunharam de perto o que ele narrava no livro.
Até hoje, sinólogos tentam desvendar a identidade dos dois comentadores, que assinavam com os pseudônimos Pedra de Tinta Vermelha e Velha Tabuleta. O primeiro, que morreu provavelmente dois anos depois do escritor, era próximo dele e tinha a mesma idade. Podia ser um homem ou uma mulher, e talvez tivesse inspirado um dos personagens do romance. Seus comentários emocionados mostram uma solidariedade dramática com o autor morto na miséria e sugerem um desfecho da história diferente do que ocorre nos 40 capítulos finais da versão impressa de 1792, que se tornou um best-seller no século 19.
Depois da morte de Cao Xueqin, uma violenta perseguição aos escritores tomou conta da China. É possível que o indivíduo que anotou os primeiros 80 capítulos sob o pseudônimo de Velha Tabuleta, e que teria podido fornecer aos leitores o final sugerido pelos comentários de Pedra de Tinta Vermelha, não o tenha feito por razões políticas, e que o tenha até mesmo suprimido. É possível que seja ele (talvez o próprio pai de Cao Xueqin), que lamenta a morte do escritor e de Pedra de Tinta Vermelha em suas anotações, o autor anônimo dos 40 capítulos finais da versão impressa.
As hipóteses são tão borgianas que é difícil supor que o autor de "O Jardim de Caminhos que se Bifurcam" não tenha percebido o potencial romanesco, trágico e policial da história. E é uma pena que não tenha deixado, em forma de ficção, a sua própria resposta para um dos maiores mistérios literários de todos os tempos.


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