|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
O grito
Quando o órgão eletrônico
entrou em minha sala, a
primeira coisa em que pensei foram nos bandeirinhas de futebol.
Pode parecer uma extravagância,
mas achei tudo parecido. Não
existe no mundo inteiro um só garoto que deseje ser bandeirinha
de futebol. Questionem-se, em
pesquisa honesta, todos os garotos do mundo em idade de sonhar
com uma profissão. Eles dirão
que desejam ser aviadores, banqueiros, artistas, músicos, craques
de bola, até mesmo alguns mencionarão a possibilidade de ser
juízes de futebol. Mas bandeirinha não haverá um só que diga
explicitamente: "Quando crescer,
quero ser bandeirinha de futebol". Mas, acreditem, nunca haverá falta de bandeirinhas nos
milhares de jogos que se realizam
em todos os cantos do mundo.
Alguns desses bandeirinhas se
tornaram notáveis, como o meu
amigo Bernardo Thrull, que terminou a bem-sucedida vida como próspero negociante, mas na
mocidade foi bandeirinha e
atuou num internacional na Argentina, no jogo entre Flamengo e
Racing. Pois o Bernardo deu um
pênalti inexistente contra os argentinos e, até bem pouco, no aeroporto de Buenos Aires havia
uma placa ali colocada pelos torcedores do Racing declarando
que o cidadão Bernardo Thrull
era pessoa indesejada no país,
proibida de pisar em solo portenho.
Dito isso, direi mais: que relação têm Bernardo Thrull, os bandeirinhas e a torcida do Racing
com o meu órgão eletrônico, que
entrou em minha casa carregado
pelos empregados do prédio, que
o transportavam como se fosse
uma relíquia, um ídolo sagrado,
um frágil ovo tamanho gigante
que podia se romper à toa?
Bem, a comparação é idiota, como todas as comparações. Mesmo
assim a faço: assim como nunca,
ninguém, em lugar nenhum do
mundo, desejou ser bandeirinha,
eu jamais poderia imaginar que
um dia teria em minha casa um
órgão, eletrônico ou não. Certo,
em minha mocidade toquei o instrumento, mal e porcamente, por
necessidade de ofício. Depois esqueci tudo, tratei de ganhar a vida de outra maneira, muito raramente me sentava a um piano e
tocava, mais de ouvido do que de
sabença.
Eis que um amigo -para agradecer um favor que lhe fiz num
momento em que ele atravessava
dificuldade-, quando as coisas
melhoraram para o lado dele, resolveu me dar um complicado órgão, cheio de registros e acompanhamentos pré-gravados. Sem fazer força e sem botar ninguém em
minha sala, posso dispor de uma
bateria completa que me acompanhará no samba, no rock, na
bossa nova, no tango, no suingue,
na valsa, no bolero. Contudo não
há acompanhamento para que
eu toque o repertório de que gosto, mas essas considerações as faço agora, depois de ter recebido o
presente e a surpresa.
Na hora, o que senti foi um terror, terror na alma, na barriga,
nos dentes e, principalmente, nos
dedos. Gosto do órgão, é o único
som que não quebra a beleza de
outro som, o do silêncio. Antes o
acentua. Habituei-me a ouvir os
antigos órgãos das igrejas, com
seus foles manuais, seus tubos esguios como agulhas góticas. Um
deles tivera os foles acionados por
escravos de uma fazenda nos confins do antigo Estado do Rio e,
surpreendentemente, funcionava
muito bem, um som bonito e solene, embora os foles estivessem desativados.
Bem diferente do órgão eletrônico, que não tem foles nem precisa de escravos. Daí que fiquei sem
desconfiar do que poderia fazer
com o zumbido metálico de um
barbeador elétrico que sai dele, o
sopro enlatado em pequeninos
transistores interligados por complicada teia de fios e botões coloridos, programado por um computador sofisticado que sabe tanto
de música como de história, geografia, mecânica espacial e pode
jogar xadrez consigo mesmo ou
comigo.
São tantas as suas possibilidades que, com pequenas variantes,
posso transformar meu poderoso
órgão num jogador de bridge ou
num guarda-livros honesto.
Sim, há que me habituar com os
tempos. O órgão lá está, em minha sala, de frente para a lagoa.
Justamente por isso, a primeira
música que toquei (os dedos nunca a esqueceram) foi "Sleep Lagoon", sucesso, se não me engano,
do final dos anos 40, quando eu
era adolescente e tinha uma namorada que gostava da música,
que, aliás, teve versão nacional do
Haroldo Barbosa, cantada por
Francisco Alves.
No embalo do repertório antigo
e não esquecido, engatei "As Time Goes By", esta mais recente e
ainda tocada nos elevadores e nos
restaurantes. Ainda como estréia,
tentei engatar um prelúdio de
Bach, mas não fui além dos primeiros compassos. Os dedos se
embaralharam nos dois teclados,
não apenas pela memória ultrajada como pelo protesto do próprio instrumento, programado
para outro tipo de música.
Nos primeiros tempos, tentei recuperar a agilidade dos dedos e o
repertório pedestre que o instrumento aceitava sem protestar.
Pressionando uma tecla verde,
obtinha o acompanhamento sensual das rumbas de Ernesto Lecuona e dos boleros de Agostin
Lara, "sensitiva mujer de alabastro...". Como quase tudo na vida,
foi bom enquanto durou.
De vez em quando, tento disciplinar os gemidos e lamentos do
órgão eletrônico. Mas não consegui ainda que ele expressasse o
meu próprio gemido. Muito menos o meu grito.
Texto Anterior: Ex-guitarrista do Pantera é morto no palco Próximo Texto: Panorâmica - Documentário: Filme de Giorgetti tem sessões grátis Índice
|