São Paulo, sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O grito

Quando o órgão eletrônico entrou em minha sala, a primeira coisa em que pensei foram nos bandeirinhas de futebol. Pode parecer uma extravagância, mas achei tudo parecido. Não existe no mundo inteiro um só garoto que deseje ser bandeirinha de futebol. Questionem-se, em pesquisa honesta, todos os garotos do mundo em idade de sonhar com uma profissão. Eles dirão que desejam ser aviadores, banqueiros, artistas, músicos, craques de bola, até mesmo alguns mencionarão a possibilidade de ser juízes de futebol. Mas bandeirinha não haverá um só que diga explicitamente: "Quando crescer, quero ser bandeirinha de futebol". Mas, acreditem, nunca haverá falta de bandeirinhas nos milhares de jogos que se realizam em todos os cantos do mundo.
Alguns desses bandeirinhas se tornaram notáveis, como o meu amigo Bernardo Thrull, que terminou a bem-sucedida vida como próspero negociante, mas na mocidade foi bandeirinha e atuou num internacional na Argentina, no jogo entre Flamengo e Racing. Pois o Bernardo deu um pênalti inexistente contra os argentinos e, até bem pouco, no aeroporto de Buenos Aires havia uma placa ali colocada pelos torcedores do Racing declarando que o cidadão Bernardo Thrull era pessoa indesejada no país, proibida de pisar em solo portenho.
Dito isso, direi mais: que relação têm Bernardo Thrull, os bandeirinhas e a torcida do Racing com o meu órgão eletrônico, que entrou em minha casa carregado pelos empregados do prédio, que o transportavam como se fosse uma relíquia, um ídolo sagrado, um frágil ovo tamanho gigante que podia se romper à toa?
Bem, a comparação é idiota, como todas as comparações. Mesmo assim a faço: assim como nunca, ninguém, em lugar nenhum do mundo, desejou ser bandeirinha, eu jamais poderia imaginar que um dia teria em minha casa um órgão, eletrônico ou não. Certo, em minha mocidade toquei o instrumento, mal e porcamente, por necessidade de ofício. Depois esqueci tudo, tratei de ganhar a vida de outra maneira, muito raramente me sentava a um piano e tocava, mais de ouvido do que de sabença.
Eis que um amigo -para agradecer um favor que lhe fiz num momento em que ele atravessava dificuldade-, quando as coisas melhoraram para o lado dele, resolveu me dar um complicado órgão, cheio de registros e acompanhamentos pré-gravados. Sem fazer força e sem botar ninguém em minha sala, posso dispor de uma bateria completa que me acompanhará no samba, no rock, na bossa nova, no tango, no suingue, na valsa, no bolero. Contudo não há acompanhamento para que eu toque o repertório de que gosto, mas essas considerações as faço agora, depois de ter recebido o presente e a surpresa.
Na hora, o que senti foi um terror, terror na alma, na barriga, nos dentes e, principalmente, nos dedos. Gosto do órgão, é o único som que não quebra a beleza de outro som, o do silêncio. Antes o acentua. Habituei-me a ouvir os antigos órgãos das igrejas, com seus foles manuais, seus tubos esguios como agulhas góticas. Um deles tivera os foles acionados por escravos de uma fazenda nos confins do antigo Estado do Rio e, surpreendentemente, funcionava muito bem, um som bonito e solene, embora os foles estivessem desativados.
Bem diferente do órgão eletrônico, que não tem foles nem precisa de escravos. Daí que fiquei sem desconfiar do que poderia fazer com o zumbido metálico de um barbeador elétrico que sai dele, o sopro enlatado em pequeninos transistores interligados por complicada teia de fios e botões coloridos, programado por um computador sofisticado que sabe tanto de música como de história, geografia, mecânica espacial e pode jogar xadrez consigo mesmo ou comigo.
São tantas as suas possibilidades que, com pequenas variantes, posso transformar meu poderoso órgão num jogador de bridge ou num guarda-livros honesto.
Sim, há que me habituar com os tempos. O órgão lá está, em minha sala, de frente para a lagoa. Justamente por isso, a primeira música que toquei (os dedos nunca a esqueceram) foi "Sleep Lagoon", sucesso, se não me engano, do final dos anos 40, quando eu era adolescente e tinha uma namorada que gostava da música, que, aliás, teve versão nacional do Haroldo Barbosa, cantada por Francisco Alves.
No embalo do repertório antigo e não esquecido, engatei "As Time Goes By", esta mais recente e ainda tocada nos elevadores e nos restaurantes. Ainda como estréia, tentei engatar um prelúdio de Bach, mas não fui além dos primeiros compassos. Os dedos se embaralharam nos dois teclados, não apenas pela memória ultrajada como pelo protesto do próprio instrumento, programado para outro tipo de música.
Nos primeiros tempos, tentei recuperar a agilidade dos dedos e o repertório pedestre que o instrumento aceitava sem protestar. Pressionando uma tecla verde, obtinha o acompanhamento sensual das rumbas de Ernesto Lecuona e dos boleros de Agostin Lara, "sensitiva mujer de alabastro...". Como quase tudo na vida, foi bom enquanto durou.
De vez em quando, tento disciplinar os gemidos e lamentos do órgão eletrônico. Mas não consegui ainda que ele expressasse o meu próprio gemido. Muito menos o meu grito.


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