São Paulo, sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

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Decifrando o rap alternativo

Representante do hip hop underground, grupo californiano Hieroglyphics toca em São Paulo

LULIE MACEDO
DA REVISTA DA FOLHA

O hip hop é pop. Está na moda, vende milhões, as celebridades gostam, a periferia também.
O hip hop é underground. Tem artistas sem dinheiro, discos produzidos em casa, divulgação boca-a-boca. Como nas leis da física, forças opostas podem partir do mesmo corpo, ainda que em direções contrárias. Mais acostumado com a versão "mainstream" do rap, o público paulistano tem a chance de conhecer o lado independente da força amanhã e domingo, quando o festival Indie Hip Hop apresenta gratuitamente no Sesc Santo André um dos pilares da cena underground norte-americana, o grupo californiano Hieroglyphics.
Aglutinados em forma de "crew" -verbete básico na cartilha do hip hop, significa coletivo de MCs, DJs, b-boys e grafiteiros unidos sob a mesma alcunha- há mais de uma década, os rappers Del the Funky Homosapien, Pep Love, Casual e o grupo Souls of Mischief declararam independência depois de uma sucessão de desavenças com suas ex-gravadoras Jive e Elektra.
O som era rap; o espírito, punk. Contaminados por uma espécie de "do it yourself", em meados dos 90 fundaram a Hiero Imperium, gravadora própria pela qual lançaram "Third Eye Vision" (1997) e "Full Circle" (2003).
Dos sete amigos que se conheceram fazendo "freestyle" (improviso) nos corredores da escola nos anos 80, Del é o único que passeia sob os holofotes do pop de vez em quando. É ele quem rima no hit "Clint Eastwood", do Gorillaz, além de ser dono do clássico "Mistadobalina", que bombou as pistas em 91. Mas Del não vem a São Paulo. Excêntrico, não gosta de viajar. No Sesc, os Hiero esperam encontrar "gente interessada em hip hop feito com o coração". De Oakland, Califórnia, Pep Love conversou com a Folha.
 

Folha - Vocês são de uma época em que o hip hop ainda era um gênero segmentado, de gueto. Hoje foi totalmente assimilado pela indústria cultural. O que significa ser underground ou independente nesse contexto?
Pep Love -
Nós somos underground antes de sermos independentes. Para mim são coisas diferentes. Ser independente tem a ver com o modo com o qual você produz e lança sua música. Já o underground está relacionado à sua produção artística, ao jeito que você pensa. No rap, também se associa underground a certas características musicais, como letras mais complexas e batidas mais pesadas, cruas. Não tem a ver com exposição na mídia ou dinheiro, entende?

Folha - Sim. Mas o que você acha de Lord Jamar [membro do Brand Nubian, grupo do chamado rap positivo] ter dito que "não ter um milhão de dólares para ferrar a cabeça deles foi o que os manteve com os pés no chão"?
Love -
Não acho que ter um milhão de dólares poderia me ferrar... [risos].

Folha - O dinheiro que artistas como Eminem e 50 Cent ganham não influencia a música que fazem?
Love -
Acho que é uma questão de personalidade, não há regra. Se eu tivesse rios de dinheiro, continuaria fazendo e gostando do mesmo tipo de som. Se alguém perde a identidade porque ganhou muita grana é porque não a tinha antes.

Folha - Casual [MC do Hieroglyphics] disse que o hip hop se tornou muito superficial. Você concorda?
Love -
Sim. O hip hop se transformou numa vadia que só quer saber de bling-blings [as correntes ostentadas por alguns rappers], champanhe, contratos milionários... Se a "vibe" não fosse essa, teríamos mais criatividade e força para promover mudanças.

Folha - Na política, por exemplo? Por que não escutamos mais letras críticas como as que o Public Enemy fazia nos anos 80?
Love -
Pergunte para a indústria fonográfica, para as redes de TV.

Folha - Em quem você votou?
Love -
Não votei no Bush. Mas, quer saber? Eu não acredito no poder político que comanda os Estados Unidos e pronto.

Folha - De alguns anos para cá, tudo o que é moderno ganhou uma pitada de hip hop, que se misturou ao rock, à música eletrônica. Qual a sua opinião?
Love -
Certamente o rock e a eletrônica se beneficiaram muito mais dessa mistura do que o hip hop. Rock é algo tão sem vida hoje que precisa de frescor... E o hip hop tem essa energia.

Folha - Já ouviu rap brasileiro?
Love -
Já ouvi Racionais MC's.

Folha - E que tal?
Love -
É muito bom. Eles têm a cara da rua, transmitem algo pesado, duro. Também já ouvi Marcelo D2. Ele tem uma boa vibe.

Folha - O que falta para o hip hop hoje?
Love -
Sinceridade, emoção. A arte do grafite junto com o movimento do break, o DJ e o MC em sintonia... Falta o senso de comunidade. Como era no início.


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