São Paulo, quinta, 10 de dezembro de 1998

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A vocação imperialista do econômico

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Qual a diferença entre um cínico e um sentimental? Oscar Wilde responde: enquanto o cínico é o sujeito que sabe o preço de tudo, mas não conhece o valor de nada, o sentimental é aquele que percebe um valor incomensurável em tudo, mas não sabe o preço de nada.
O contraste retrata visões polares quanto ao lugar do econômico na existência humana. O cínico é um idiota da objetividade. Cego a tudo que vá além da métrica monetária, ele é diligente nos negócios, mas indolente no espírito. O sentimental é uma espécie de idiota da subjetividade: o cândido visionário alheio à realidade do mercado. Prenhe de sonhos, não raro parasita ou carente.
Nada em excesso. O ideal, creio, seria encontrar um equilíbrio entre os dois extremos. Sonhar e apostar no sonho, mas sem perder o pé da realidade. Saber respeitar o econômico -até para que ele não se vingue dos desaforos sofridos nos escravizando por completo-, mas também não permitir que a força do seu apelo se torne um monovalor imperialista, capaz de subjugar e render tudo que obstar seu domínio.
Mas, se os riscos apontados por Wilde são em tese simétricos, a experiência mostra que na prática a propensão natural da sociedade humana pende muito mais para os excessos do cinismo do que do sentimentalismo. Mais que isso, o grau de afluência material parece contribuir não para atenuar, mas sim agravar o problema.
Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos por Robert Wuthnow, professor de sociologia da Universidade de Princeton, apresenta resultados intrigantes. Que imagens alimentam os americanos sobre si mesmos e sobre os valores que regem suas vidas?
O dado mais surpreendente, obtido a partir de cerca de 2.000 entrevistas qualitativas feitas no início dos anos 90, é que 89% dos americanos consideram a sociedade em que vivem excessivamente preocupada com dinheiro e 74% julgam que o materialismo exagerado é um grave problema social.
É curioso. O que esses números revelam é que a ampla maioria da sociedade americana não se reconhece nos valores que governam a sua convivência. O tom geral da cultura, marcado por forte apego ao ganho e aos bens deste mundo ("As coisas tomaram a sela e cavalgam a humanidade", protestava Emerson), destoa das preferências declaradas daqueles que nela vivem e trabalham.
Existe um quê de paradoxal nessa situação. Como é possível que algo assim aconteça? Afinal, é de se indagar, se uma parcela tão expressiva dos americanos acredita mesmo que o materialismo excessivo é um mal em suas vidas -algo a ser combatido como, digamos, a poluição e o tabagismo-, então porque eles não passam a cultivar outros valores e, desse modo, solucionam o problema que tanto os aflige?
A situação aqui me faz lembrar de outra pesquisa, também realizada nos EUA, segundo a qual nove entre dez motoristas americanos consideram que dirigem melhor do que a média. Trata-se, é evidente, de uma impossibilidade estatística. É provável até que muitos dos que se declaram abaixo da média estejam na verdade acima dela, dado que pelo menos não superestimam em demasia a sua perícia ao volante.
Parte da resposta nos dois casos, suponho, tem a ver com o viés do juízo em causa própria.
O ponto de vista interno de cada um sobre o seu próprio caráter e conduta na vida prática difere da perspectiva externa dos demais. A opinião de cada motorista, baseada na vivência íntima que tem de suas habilidades, não bate com a percepção dos que interagem com ele nas ruas e para os quais ele não passa de mais um barbeiro na multidão.
O mesmo se aplica ao materialismo. O afã de lucro e de consumo alheios, vistos de fora, diferem do praticado por nós. O nosso materialismo não nos ofende e agride tanto quanto o dos demais. Quem se imaginaria cínico (na acepção de Wilde) perante si mesmo? O turismo que faço é cultural; o alheio é crasso e vulgar. Como diria La Rochefoucauld: "Cada um de nós descobre nos outros as mesmas falhas que os outros descobrem em nós".
É pena que o questionário da pesquisa não tenha explorado essa veia. Seria interessante saber, por exemplo, que proporção dos entrevistados se considera menos materialista que a média dos seus conterrâneos. O que fica patente, contudo, é que o teor das respostas sofre uma guinada radical quando o que está em jogo é a atitude pessoal de cada um.
Apesar de sua visão crítica do que vai ao redor, a maioria dos americanos assume o seu forte desejo por mais dinheiro e posses: 76% dos entrevistados afirmam que "ter dinheiro me faz sentir bem comigo mesmo", 74% desejam faturar mais e 76% concordam que "ter uma bela casa, carro novo e coisas do gênero" constitui um de seus mais importantes valores na vida.
A tensão é clara. Há um conflito entre o sistema motivacional (o desejado individualmente pela maioria) e o sistema valorativo (o que seria desejável coletivamente, segundo a opinião da maioria). O sonho de um mundo menos escravizado ao econômico se choca com a realidade da força da motivação econômica no sonho de cada um.
"A nossa época", dizia Nietzsche, "pode falar incessantemente de economia, mas é de fato uma dilapidadora: ela dilapida a coisa mais preciosa que existe, o espírito".
Concordar, em abstrato, com o veredicto nietzschiano é fácil. O desafio é encontrar valores e formas de vida que possam neutralizar e superar, em ambiente de liberdade, a ascendência do valor econômico sobre a psicologia moral do animal humano.
O descontentamento é o motor da mudança. O conflito entre valores sonhados e vividos é sintoma de ambivalência e alienação. Há uma guerra imperialista no peito de cada um. É aí que pode surgir o novo. A pergunta que fica, do ponto de vista prático, é a formulada por Keynes: "Por que não deveríamos começar a colher os frutos espirituais de nossas conquistas materiais?".




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