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A vocação imperialista do econômico
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Qual a diferença entre um cínico e um sentimental? Oscar
Wilde responde: enquanto o cínico é o sujeito que sabe o preço
de tudo, mas não conhece o valor de nada, o sentimental é
aquele que percebe um valor
incomensurável em tudo, mas
não sabe o preço de nada.
O contraste retrata visões polares quanto ao lugar do econômico na existência humana.
O cínico é um idiota da objetividade. Cego a tudo que vá
além da métrica monetária, ele
é diligente nos negócios, mas
indolente no espírito. O sentimental é uma espécie de idiota
da subjetividade: o cândido visionário alheio à realidade do
mercado. Prenhe de sonhos,
não raro parasita ou carente.
Nada em excesso. O ideal,
creio, seria encontrar um equilíbrio entre os dois extremos.
Sonhar e apostar no sonho,
mas sem perder o pé da realidade. Saber respeitar o econômico -até para que ele não se
vingue dos desaforos sofridos
nos escravizando por completo-, mas também não permitir
que a força do seu apelo se torne
um monovalor imperialista, capaz de subjugar e render tudo
que obstar seu domínio.
Mas, se os riscos apontados
por Wilde são em tese simétricos, a experiência mostra que
na prática a propensão natural
da sociedade humana pende
muito mais para os excessos do
cinismo do que do sentimentalismo. Mais que isso, o grau de
afluência material parece contribuir não para atenuar, mas
sim agravar o problema.
Uma pesquisa realizada nos
Estados Unidos por Robert
Wuthnow, professor de sociologia da Universidade de Princeton, apresenta resultados intrigantes. Que imagens alimentam os americanos sobre si mesmos e sobre os valores que regem suas vidas?
O dado mais surpreendente,
obtido a partir de cerca de 2.000
entrevistas qualitativas feitas
no início dos anos 90, é que 89%
dos americanos consideram a
sociedade em que vivem excessivamente preocupada com dinheiro e 74% julgam que o materialismo exagerado é um grave problema social.
É curioso. O que esses números revelam é que a ampla
maioria da sociedade americana não se reconhece nos valores
que governam a sua convivência. O tom geral da cultura,
marcado por forte apego ao ganho e aos bens deste mundo
("As coisas tomaram a sela e cavalgam a humanidade", protestava Emerson), destoa das preferências declaradas daqueles
que nela vivem e trabalham.
Existe um quê de paradoxal
nessa situação. Como é possível
que algo assim aconteça? Afinal, é de se indagar, se uma parcela tão expressiva dos americanos acredita mesmo que o
materialismo excessivo é um
mal em suas vidas -algo a ser
combatido como, digamos, a
poluição e o tabagismo-, então porque eles não passam a
cultivar outros valores e, desse
modo, solucionam o problema
que tanto os aflige?
A situação aqui me faz lembrar de outra pesquisa, também
realizada nos EUA, segundo a
qual nove entre dez motoristas
americanos consideram que dirigem melhor do que a média.
Trata-se, é evidente, de uma
impossibilidade estatística. É
provável até que muitos dos que
se declaram abaixo da média
estejam na verdade acima dela,
dado que pelo menos não superestimam em demasia a sua perícia ao volante.
Parte da resposta nos dois casos, suponho, tem a ver com o
viés do juízo em causa própria.
O ponto de vista interno de cada um sobre o seu próprio caráter e conduta na vida prática
difere da perspectiva externa
dos demais. A opinião de cada
motorista, baseada na vivência
íntima que tem de suas habilidades, não bate com a percepção dos que interagem com ele
nas ruas e para os quais ele não
passa de mais um barbeiro na
multidão.
O mesmo se aplica ao materialismo. O afã de lucro e de
consumo alheios, vistos de fora,
diferem do praticado por nós. O
nosso materialismo não nos
ofende e agride tanto quanto o
dos demais. Quem se imaginaria cínico (na acepção de Wilde) perante si mesmo? O turismo que faço é cultural; o alheio
é crasso e vulgar. Como diria La
Rochefoucauld: "Cada um de
nós descobre nos outros as mesmas falhas que os outros descobrem em nós".
É pena que o questionário da
pesquisa não tenha explorado
essa veia. Seria interessante saber, por exemplo, que proporção dos entrevistados se considera menos materialista que a
média dos seus conterrâneos. O
que fica patente, contudo, é que
o teor das respostas sofre uma
guinada radical quando o que
está em jogo é a atitude pessoal
de cada um.
Apesar de sua visão crítica do
que vai ao redor, a maioria dos
americanos assume o seu forte
desejo por mais dinheiro e posses: 76% dos entrevistados afirmam que "ter dinheiro me faz
sentir bem comigo mesmo",
74% desejam faturar mais e
76% concordam que "ter uma
bela casa, carro novo e coisas do
gênero" constitui um de seus
mais importantes valores na vida.
A tensão é clara. Há um conflito entre o sistema motivacional (o desejado individualmente pela maioria) e o sistema valorativo (o que seria desejável
coletivamente, segundo a opinião da maioria). O sonho de
um mundo menos escravizado
ao econômico se choca com a
realidade da força da motivação econômica no sonho de cada um.
"A nossa época", dizia Nietzsche, "pode falar incessantemente de economia, mas é de fato
uma dilapidadora: ela dilapida
a coisa mais preciosa que existe,
o espírito".
Concordar, em abstrato, com
o veredicto nietzschiano é fácil.
O desafio é encontrar valores e
formas de vida que possam neutralizar e superar, em ambiente
de liberdade, a ascendência do
valor econômico sobre a psicologia moral do animal humano.
O descontentamento é o motor da mudança. O conflito entre valores sonhados e vividos é
sintoma de ambivalência e alienação. Há uma guerra imperialista no peito de cada um. É aí
que pode surgir o novo. A pergunta que fica, do ponto de vista prático, é a formulada por
Keynes: "Por que não deveríamos começar a colher os frutos
espirituais de nossas conquistas
materiais?".
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