São Paulo, quinta, 10 de dezembro de 1998

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LITERATURA

Saramago saúda seu mestre, o personagem

Reuters
Saramago é saudado por Peer Wasterber, membro da Academia Sueca


Escritor português, que recebe hoje o Nobel, homenageia em discurso suas criaturas e seus antepassados

JAVIER GARCÍA
do "El Pais", em Estocolmo

O escritor português José Saramago, 76, descendente de pastores analfabetos, sem estudos universitários e que não pôde comprar um livro até os 19 anos, realizou na tarde de segunda-feira um dos sonhos dos criadores literários: leu na Academia Sueca seu discurso como novo Nobel de Literatura, o primeiro em língua portuguesa, que recebe hoje em Estocolmo. (A entrega será transmitida ao vivo a partir das 13h pela TV Cultura.)
No discurso, Saramago contou como se converteu em aprendiz, voz e eco de seus personagens, expressando por meio deles suas preocupações, inquietudes e as mais profundas obsessões.
De terno azul-escuro e camisa branca, Saramago entrou no salão nobre da Academia às 17h30 em ponto. As cerca de 300 pessoas presentes aplaudiram de pé. Sua mulher, a espanhola Pilar del Río, se deteve atrás dele, observando tudo. Com sua serenidade habitual, Saramago iniciou o discurso.
"O homem mais sábio que conheci não sabia ler nem escrever", disse. Ele se referia ao avô materno, Jerônimo Melrinho, criador de porcos e contador de histórias, com quem viveu até a adolescência. Anos depois, teve consciência de que estava transformando as pessoas comuns que haviam sido seus personagens em mestres e voz de tudo aquilo que transmitia.
"Agora sou capaz de ver com clareza quem foram meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos."
"Desses mestres", completou, "o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H" -o protagonista do "Manual de Pintura e Caligrafia", que lhe mostrou "a honradez elementar de aceitar, sem ressentimentos nem frustrações, seus próprios limites".
Vieram depois os homens e as mulheres do feudo comunista do Alentejo em seu romance "Levantado do Chão", "camponeses rudes obrigados a alugar a força de seus braços em troca de um salário e condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames".
Pouco a pouco, o escritor repassou sua vida e sua carreira. O público escutava em total silêncio, só interrompido pelo som das folhas sendo viradas, já que a maioria da platéia acompanhava por traduções ao sueco, inglês e francês.
Na solenidade, um membro da Academia explicou que os fatores da concessão dessa honraria ao escritor comunista tinham sido, entre outros, a dignidade com que sempre encarou sua carreira literária. Pesou muito na decisão também o fato de sua obra simbolizar as ansiedades do homem atual.
Saramago revisou em seu discurso "Jangada de Pedra", uma fábula sobre a península Ibérica que se separa da Europa buscando "o encontro cultural dos povos peninsulares do outro lado do Atlântico, desafiando o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens". Uma Europa que, acha, deve se deslocar mais ao sul, ajudando a equilibrar o mundo.
Recordando o "Ensaio sobre a Cegueira", Saramago denunciou como a dignidade humana é "insultada todos os dias pelos poderosos de nosso mundo" e como "o homem deixou de respeitar a si mesmo quando perdeu o respeito que tinha por seu semelhante".
O texto do discurso acaba assim: "Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo". Mas Saramago não pôde se conter e gritou: "Viva a literatura! Viva o Nobel! Viva Saramago!". Foram ouvidos muitos "bravos" na sala.


Tradução de Cynara Menezes


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