São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Índice

LIVRO/LANÇAMENTO

"ALBERT CAMUS E O TEÓLOGO"

Obra realça preocupação de Camus com a religião

Divulgação
Albert Camus, tema de livro de Howard Mumma


MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para os leitores acostumados com o Albert Camus (1913-1960) de "O Estrangeiro", com o Camus do "pensamento mediterrâneo" -que em "O Homem Revoltado" formulou uma ética ao mesmo tempo trágica e libertária, inspirada tanto em Nietzsche quanto na sensualidade solar de sua Argélia natal- o livro de Howard Mumma que acaba de ser lançado, "Albert Camus e o Teólogo", será uma surpresa.
Pastor metodista que viveu na França nos anos 50, Mumma relata uma série de encontros com o escritor. O retrato que surge é o de um homem consumido por aflições espirituais, um ateu a contragosto, obsedado pela tentativa de dar um sentido aos dilaceramentos morais e políticos de uma Europa traumatizada pela Segunda Guerra e pelo Holocausto.
A preocupação de Camus com o pensamento religioso não chega a ser uma novidade, mas certamente ocupa um lugar menos conhecido de sua obra. Na juventude, ele escreveu "Metafísica Cristã e Neoplatonismo", em que discute o cristianismo primitivo e o pensamento de Plotino e Santo Agostinho. Ao longo de sua produção, pode-se detectar a presença de Pascal e Dostoiévski: a noção de "absurdo" ecoa o "Deus escondido" dos aforismos pascalianos; "A Queda", sua obra mais complexa, é um diálogo com "Memórias do Subsolo", a sombria novela do romancista e cristão ortodoxo russo. Nesse sentido, as reuniões entre Mumma e Camus ajudam a traçar a origem teológica de alguns temas de suas obras.
A longa discussão sobre a teodicéia (a justificação da existência do Mal em um mundo governado por um Deus supostamente onipotente e misericordioso) é o ponto alto do livro e permite o confronto entre a visão de Mumma (para quem a possibilidade da injustiça e da dor é inerente ao livre arbítrio conferido por Deus ao homem) e a insurreição metafísica de Camus, que fez do romance "A Peste" uma meditação sobre a gratuidade dos flagelos humanos.
Ao longo de todo o livro persiste uma incômoda sensação de que os diálogos reconstituídos têm algo de inverossímil, que há algo de ficcional. Isso se deve, em parte, à própria gênese do livro, que foi escrito em 2000 (ou seja, cerca de 50 anos após os eventos narrados), com base em anotações esparsas e recordações que são incompatíveis com o requinte de detalhes dos diálogos. Mumma descreve gestos e expressões faciais de Camus que dificilmente poderiam ter se conservado em suas lembranças na forma pretensamente documental relatada.
Essa impressão é corroborada por uma grave inconsistência factual: ao rememorar o acidente de automóvel que matou o escritor em 1960, Mumma afirma ter lamentado seu fracasso em restaurar a fé de Camus, que teria sido "suficiente para ter impedido o que (...) era obviamente um suicídio". A suposição de suicídio só teria sentido se Camus estivesse ao volante, mas, como se sabe, ele era passageiro do carro. Tais imprecisões, contudo, não comprometem a leitura do livro. A honestidade intelectual faz com que Mumma declare que suas transcrições não constituem um registro literal. E o fato é que, mesmo oscilando entre memória e invenção, ele consegue compor um retrato fiel das aflições que percorreram a vida e a obra de Camus.


Manuel da Costa Pinto é jornalista, editor da revista "Cult" e autor de "Albert Camus: Um Elogio do Ensaio" (Ateliê Editorial)
Albert Camus e o Teólogo
   
Autor: Howard Mumma Editora: Carrenho Editorial Quanto: R$ 22 (128 págs.)



Texto Anterior: Drauzio Varella: A fome e a evolução da espécie
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.