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DRAUZIO VARELLA
A fome e a evolução da espécie
É mais fácil suportar dores
crônicas do que a fome. Trinta e cinco anos de clínica me ensinaram que geralmente somos patifes para dores agudas de forte
intensidade; vi doentes rolarem
no chão e suplicarem a Deus que
se lembrasse deles no auge de
uma cólica renal, de uma crise de
vesícula ou de uma cefaléia excruciante. Em compensação,
muita gente convive com dores
crônicas na coluna, cólicas abdominais, episódios repetitivos de
enxaquecas, estoicamente, sem
lamentar a sorte. A persistência
do quadro doloroso mobiliza reações incríveis nos organismos que
sofrem dele.
Já com a fome não é assim.
Quando ela aperta, o prazer de
estar vivo desaparece. A paisagem mais encantadora, a mulher
amada, o prêmio da loteria, nada
traz ao faminto alegria que se
compare a um prato de comida.
A baixa resistência à fome
quando comparada à capacidade
de enfrentar a dor tem raízes evolucionistas. Traumatismos, doenças infecciosas e parasitárias são
flagelos que afligiram nossos antepassados desde as cavernas.
Num mundo sem analgésicos, a
dor era parte inerente das preocupações diárias.
Como consequência dos quadros dolorosos repetitivos, levaram vantagem na seleção natural
aqueles que desenvolveram sistemas nervosos com a habilidade
de produzir mediadores químicos, capazes de bloquear pelo menos parcialmente a condução de
estímulos dolorosos mais duradouros. Somos descendentes de
mulheres e homens que aprenderam a produzir endorfinas e outros mediadores em resposta à
dor e ao cansaço extremo com a
finalidade de reduzir-lhes a intensidade e assegurar a sobrevivência.
Em relação à fome, os mecanismos adaptativos tiveram impacto
mais sutil, porque a falta prolongada de alimentos provoca fraqueza, redução da massa muscular e incapacidade de responder
adequadamente às situações de
perigo. No melhor estilo darwiniano, num mundo de predadores, quem não consegue caçar é
predado precocemente e tem menos chance de deixar descendentes.
Como a história da humanidade é uma longa sucessão de epidemias de fome, nossos ancestrais
acabaram desenvolvendo alguns
recursos para fazer frente às épocas das vacas magras. Dois desses
mecanismos de adaptação constituem o grande suplício dos que
pretendem perder peso num
mundo com oferta abundante de
alimentos.
O primeiro é o retardo da ativação dos circuitos de neurônios
que convergem para uma área cerebral considerada o centro da saciedade. Para manter peso, o
ideal seria que esse centro fosse
acionado ao ingerirmos a última
caloria necessária para cobrir as
necessidades energéticas diárias
do organismo e o apetite desaparecesse imediatamente até o dia
seguinte. Mas, se a saciedade tivesse essas características, nossos
antepassados não teriam sobrevivido. Para eles, comida farta era
ocasião de festa. Quando conseguiam encontrar frutas, caça ou
carcaças, que disputavam a
unhas e dentes com outros carnívoros, não podiam se dar ao luxo
de fazer cerimônia: ingeriam a
maior quantidade que aguentavam. O excesso de calorias absorvidas era armazenado em depósitos de gordura sob a pele, providência fundamental para sobreviver às fases de jejum prolongado que certamente viriam.
Levaram vantagem na competição pelos recursos naturais disponíveis os portadores de centros
de saciedade que demoravam
mais para serem ativados, mecanismo que lhes possibilitava a ingestão de muitas calorias em excesso. Isso explica o arrependimento manifestado tantas vezes
ao levantarmos da mesa com a
sensação de quem comeu um boi:
"Por que não parei antes?". Explica também por que a vontade de
continuar comendo às vezes desaparece quando interrompemos o
final de uma refeição para atender ao telefone. No final da refeição, o centro da saciedade exige
um intervalo de tempo para ser
ativado pelos mediadores liberados no aparelho digestivo. Por isso, os médicos recomendam comer devagar aos que pretendem
perder peso.
A segunda armadilha que a
evolução armou para o futuro alimentar da espécie humana diz
respeito à energia que o organismo consome em repouso. Da mesma forma que um carro funcionando em ponto morto, o corpo
gasta energia mesmo parado para manter o coração batendo, os
pulmões sendo ventilados, o movimentos das alças intestinais, os
estímulos correndo pelos neurônios e todas as reações metabólicas.
A quantidade de energia gasta
em repouso varia de um corpo
para outro, de acordo com fatores
genéticos: há pessoas que consomem muita energia em repouso;
outras gastam pouco. As primeiras, por esbanjarem calorias, terão mais dificuldade de engordar;
as outras, por serem econômicas
no consumo, ganharão peso com
mais facilidade. Além de maldizermos nossos pais pelo legado
que nos deixaram, aparentemente nada pode ser feito para modificar essa característica do equilíbrio energético individual.
Quando o organismo é privado
do número mínimo de calorias
necessárias para manter todas as
células vivas, o cérebro põe em
prática dois mecanismos compensatórios: o centro de saciedade
se torna mais refratário à ativação e a energia gasta em repouso
diminui. Como consequência, a
saciedade tarda mais para se fazer sentir (a fome aumenta desproporcionalmente) e o corpo reduz o consumo energético para
funcionar em ponto morto, a fim
de aproveitar com mais sabedoria
as parcas calorias disponíveis. Por
essa razão, os regimes de emagrecimento vão bem nas primeiras
semanas, mas perdem eficácia à
medida que o tempo passa.
Para quem tem acesso ao disque-pizza e à geladeira cheia, o
martírio de conviver com a fome
permanente é uma afronta aos
princípios básicos da evolução de
nossa espécie.
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