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MARCELO COELHO
O marketing do sucesso e da penitência
Leio e releio, dobro e desdobro a página do jornal, mas
ainda não tenho certeza de ter entendido o famoso Réveillon que
José Dirceu e Paulo Coelho passaram juntos, numa cidadezinha
do sul da França. A reportagem
de Mônica Bergamo saiu na Ilustrada de 3 de janeiro; lá estão, lado a lado, "o bruxo e o feiticeiro",
como diz o título, e a foto principal mostra os dois, de perfil, ao pé
de uma igreja azulada e severa.
Não parecem peregrinos. Entretanto, estão vestidos de modo
quase idêntico: sobretudo escuro,
chapéu preto, cachecol. José Dirceu leva consigo uma caixa de papelão branco: serão provas de inocência em algum processo? Ou
garrafas de um Grand Cru que terá ganho de presente?
A dupla tem um ar empenhado,
como se envolvida em algum empreendimento sigiloso: poderiam
ser corretores de imóveis, levando
adiante uma demorada negociação com as autoridades do mosteiro. Também poderiam ser investigadores da Sûreté, enviados
diretamente de Paris para elucidar uma série de envenenamentos suspeitos -só ilações, por enquanto- nas aldeias ali perto.
O clima, seja como for, é de mistério. Em situações assim, os franceses têm uma recomendação célebre: "Cherchez la femme". Procuro, procuro, mas não encontro
mulher nenhuma por trás do caso. O que encontro, isso sim, é a
barba cerrada, as sobrancelhas
grossas e o charuto de Fernando
Morais. O escritor elabora simultaneamente a biografia de Paulo
Coelho e as memórias de José Dirceu. Não foi má idéia, em termos
de "marketing" literário, que todos se congregassem num mesmo
Réveillon.
Se Fernando Morais fosse pós-moderno, até que poderia juntar
dois livros num só. Esse tipo de
coisa andou em moda nos anos
80: o encontro de Mao e Nixon virou uma ópera, por exemplo; outro compositor imaginou Dorothy
Lamour e James Joyce surfando
no litoral paulista; já se escreveram peças em que Marx contracenava com Sherlock Holmes e com
Jack, o Estripador... e por aí vai.
Certamente, a verossimilhança
não é o forte de Paulo Coelho nem
de José Dirceu, e os espíritos do
realismo socialista terão de baixar com força no laptop de Fernando Morais para que as duas
biografias adquiram a consistência de "Olga" ou de "A Ilha".
Mas o que significa esse triplo
encontro em torno da igreja de
Notre-Dame de Betharram? "La
Rencontre à Betharram" poderia
ser o título de um romance de
Mauriac ou Bernanos. De fato, alguns temas ao gosto dos romancistas católicos franceses estavam
subliminarmente em jogo naquele Réveillon: os da culpa, do pecado, da danação e da desgraça.
Paulo Coelho constitui o caso
mais fácil de interpretar. Sabe-se
que, na década de 70, flertava
com os espíritos do Mal. Posteriormente, converteu-se à Luz. Quanto maior o êxito de seus livros,
mais intenso o processo de sua demonização pela crítica e pelos estratos intelectuais. "Já beijei a lona", declarou à reportagem. "Sei
como é."
Tantas vezes patrulhado, Paulo
Coelho abre então os braços para
um novo anjo caído, o antigo patrulhador, o ateu renitente, o político maquiavélico e arrogante, o
homem das mil malvadezas, o político dos mil disfarces, o clandestino de todos os regimes, José Dirceu.
Emergindo do pântano da auto-ajuda, o "mago" se reabilita
junto aos setores mais duros da esquerda petista. Articulador finório dos bastidores do mar de lama, o ex-ministro pisa humildemente o seco chão de Betharram.
Encapotados, impávidos, Paulo
Coelho e José Dirceu enfrentam
juntos os anátemas dos "formadores de opinião". Lado a lado,
potencializam as respectivas auras de "figura maldita". É o que
lhes restará de melhor, quando as
últimas convicções se esvaírem
por completo. A danação é o único sopro divino a que podem aspirar, junto com a fumaça dos charutos.
Eis um ponto capaz de atrair as
simpatias de Fernando Morais.
Apesar de seu pedigree de esquerda, o autor de "A Ilha" sempre
manteve distância do estilo persecutório do moralismo petista em
seus bons tempos. Sua proximidade de longa data com Orestes
Quércia, por exemplo, sugere um
entendimento muito realista da
atividade política -a quilômetros daquilo que, em outra época,
se chamava "principismo pequeno-burguês".
É provavelmente nisso que José
Dirceu estaria pensando, aliás,
quando afirmou não estar mais
disposto a participar das atividades do PT. Ficar ouvindo discursos de Tarso Genro e Raul Pont,
confidenciou com um sorriso,
"não dá...". Como Paulo Coelho,
José Dirceu já ascendeu a outro
patamar de sabedoria, conhece
melhor os homens, não persiste
em antigas ilusões.
Sem dúvida, o ânimo de José
Dirceu não tem nada de penitente, e Paulo Coelho não dá a mínima para o que a esquerda petista
pense dele. A lógica deste evento é
puramente midiática, e se apresenta como tal: Paulo Coelho dá
as boas-vindas a José Dirceu num
universo que se situa além do julgamento ético de quem quer que
seja. É o universo das celebridades, onde qualquer coisa -separações, bebedeiras, conversões espirituais, escândalos de alcova, cirurgias de lipoaspiração- é avaliada apenas pelas fotos e pelo barulho que possa causar.
Estar entre os famosos equivale
a ter razão. Agir como vitorioso já
é sinal de vitória. Comemorar à
tripa forra é prova de inocência. A
casca espiritualizante, sacramental e meditativa do encontro lhe
traz um quê de festa temática. A
caminhada numa manhã de inverno imitava os passos do Calvário; mas o que conta é a Ceia que a
confraria "degustou" na véspera:
ravioli de foie gras, coquilles St.
Jacques com trufas e endívias caramelizadas etc. Não é a última:
muitas outras virão.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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