São Paulo, quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

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MARCELO COELHO

O marketing do sucesso e da penitência

Leio e releio, dobro e desdobro a página do jornal, mas ainda não tenho certeza de ter entendido o famoso Réveillon que José Dirceu e Paulo Coelho passaram juntos, numa cidadezinha do sul da França. A reportagem de Mônica Bergamo saiu na Ilustrada de 3 de janeiro; lá estão, lado a lado, "o bruxo e o feiticeiro", como diz o título, e a foto principal mostra os dois, de perfil, ao pé de uma igreja azulada e severa.
Não parecem peregrinos. Entretanto, estão vestidos de modo quase idêntico: sobretudo escuro, chapéu preto, cachecol. José Dirceu leva consigo uma caixa de papelão branco: serão provas de inocência em algum processo? Ou garrafas de um Grand Cru que terá ganho de presente?
A dupla tem um ar empenhado, como se envolvida em algum empreendimento sigiloso: poderiam ser corretores de imóveis, levando adiante uma demorada negociação com as autoridades do mosteiro. Também poderiam ser investigadores da Sûreté, enviados diretamente de Paris para elucidar uma série de envenenamentos suspeitos -só ilações, por enquanto- nas aldeias ali perto.
O clima, seja como for, é de mistério. Em situações assim, os franceses têm uma recomendação célebre: "Cherchez la femme". Procuro, procuro, mas não encontro mulher nenhuma por trás do caso. O que encontro, isso sim, é a barba cerrada, as sobrancelhas grossas e o charuto de Fernando Morais. O escritor elabora simultaneamente a biografia de Paulo Coelho e as memórias de José Dirceu. Não foi má idéia, em termos de "marketing" literário, que todos se congregassem num mesmo Réveillon.
Se Fernando Morais fosse pós-moderno, até que poderia juntar dois livros num só. Esse tipo de coisa andou em moda nos anos 80: o encontro de Mao e Nixon virou uma ópera, por exemplo; outro compositor imaginou Dorothy Lamour e James Joyce surfando no litoral paulista; já se escreveram peças em que Marx contracenava com Sherlock Holmes e com Jack, o Estripador... e por aí vai.
Certamente, a verossimilhança não é o forte de Paulo Coelho nem de José Dirceu, e os espíritos do realismo socialista terão de baixar com força no laptop de Fernando Morais para que as duas biografias adquiram a consistência de "Olga" ou de "A Ilha".
Mas o que significa esse triplo encontro em torno da igreja de Notre-Dame de Betharram? "La Rencontre à Betharram" poderia ser o título de um romance de Mauriac ou Bernanos. De fato, alguns temas ao gosto dos romancistas católicos franceses estavam subliminarmente em jogo naquele Réveillon: os da culpa, do pecado, da danação e da desgraça.
Paulo Coelho constitui o caso mais fácil de interpretar. Sabe-se que, na década de 70, flertava com os espíritos do Mal. Posteriormente, converteu-se à Luz. Quanto maior o êxito de seus livros, mais intenso o processo de sua demonização pela crítica e pelos estratos intelectuais. "Já beijei a lona", declarou à reportagem. "Sei como é."
Tantas vezes patrulhado, Paulo Coelho abre então os braços para um novo anjo caído, o antigo patrulhador, o ateu renitente, o político maquiavélico e arrogante, o homem das mil malvadezas, o político dos mil disfarces, o clandestino de todos os regimes, José Dirceu.
Emergindo do pântano da auto-ajuda, o "mago" se reabilita junto aos setores mais duros da esquerda petista. Articulador finório dos bastidores do mar de lama, o ex-ministro pisa humildemente o seco chão de Betharram. Encapotados, impávidos, Paulo Coelho e José Dirceu enfrentam juntos os anátemas dos "formadores de opinião". Lado a lado, potencializam as respectivas auras de "figura maldita". É o que lhes restará de melhor, quando as últimas convicções se esvaírem por completo. A danação é o único sopro divino a que podem aspirar, junto com a fumaça dos charutos.
Eis um ponto capaz de atrair as simpatias de Fernando Morais. Apesar de seu pedigree de esquerda, o autor de "A Ilha" sempre manteve distância do estilo persecutório do moralismo petista em seus bons tempos. Sua proximidade de longa data com Orestes Quércia, por exemplo, sugere um entendimento muito realista da atividade política -a quilômetros daquilo que, em outra época, se chamava "principismo pequeno-burguês".
É provavelmente nisso que José Dirceu estaria pensando, aliás, quando afirmou não estar mais disposto a participar das atividades do PT. Ficar ouvindo discursos de Tarso Genro e Raul Pont, confidenciou com um sorriso, "não dá...". Como Paulo Coelho, José Dirceu já ascendeu a outro patamar de sabedoria, conhece melhor os homens, não persiste em antigas ilusões.
Sem dúvida, o ânimo de José Dirceu não tem nada de penitente, e Paulo Coelho não dá a mínima para o que a esquerda petista pense dele. A lógica deste evento é puramente midiática, e se apresenta como tal: Paulo Coelho dá as boas-vindas a José Dirceu num universo que se situa além do julgamento ético de quem quer que seja. É o universo das celebridades, onde qualquer coisa -separações, bebedeiras, conversões espirituais, escândalos de alcova, cirurgias de lipoaspiração- é avaliada apenas pelas fotos e pelo barulho que possa causar.
Estar entre os famosos equivale a ter razão. Agir como vitorioso já é sinal de vitória. Comemorar à tripa forra é prova de inocência. A casca espiritualizante, sacramental e meditativa do encontro lhe traz um quê de festa temática. A caminhada numa manhã de inverno imitava os passos do Calvário; mas o que conta é a Ceia que a confraria "degustou" na véspera: ravioli de foie gras, coquilles St. Jacques com trufas e endívias caramelizadas etc. Não é a última: muitas outras virão.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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