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Cinema/estréias - Crítica/"A Espiã"
Verhoeven faz jogo com a descrença na narrativa
Filme é um "thriller" admirável, cheio de incongruências e implausibilidades
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Se existe uma lição a tirar
de "A Espiã" é que numa
guerra nunca se sabe
quem é quem. É possível levar a
lógica um pouco mais além: a
guerra traz à tona o que existe
de mais profundo nas pessoas,
da generosidade à ganância, do
altruísmo ao egoísmo mais profundo, da fidelidade à traição.
Para generalizar a lição, é possível concluir, de modo muito
pessimista, que, a rigor, nunca
conhecemos ninguém.
Digamos que o filme de Paul
Verhoeven fica, nesse nível, por
aí. Mas há razões para crer que
não seja esse o aspecto principal das reflexões do autor de
"Robocop" de volta à Holanda.
Senão, vejamos: não será pelo menos estranho constatar
que esse cineasta experiente
realiza um filme em que se abre
tão gentilmente aos cada vez
mais numerosos caçadores de
incongruências e implausibilidades? E elas pululam ao longo
deste "thriller" admirável. Para
citar apenas uma, logo no início
do filme: não soa meio falso que
uma moça judia de família rica,
como Rachel/Ellis, vire cantora
profissional nos anos 30?
Questões desse tipo podem
ser suscitadas ao longo de toda
a trama, que se organiza na Holanda, no final da guerra. Devido ao assédio dos nazistas, Rachel e família tentam fugir para
a Bélgica. A balsa em que viajam é metralhada pelos alemães. Única sobrevivente, Rachel (Carice van Houten) engaja-se em um núcleo da Resistência e passa a se chamar Ellis
de Vries. É feita espiã e torna-se
amante do chefe do serviço secreto da SS, Ludwig Müntze
(Sebastian Koch).
Toda história de espionagem
-ainda mais se duplicada pela
resistência- carrega um tanto
de inverossímil, como Htichcock sabia muito bem. Mas a
época de Hitchcock era de
crença. Hoje, é de descrença. A
ficção é objeto de desconfiança,
como se "a vida vivida" fosse de
verdade e a imaginada fosse
uma mentira. Não é por acaso
que tantos filmes (inclusive este) usam a caução: "baseado em
fatos reais".
É esse núcleo da arte contemporânea que Verhoeven
trabalhará de maneira específica aqui. As reviravoltas são tão
rocambolescas que é quase impossível ao espectador não se
perguntar se aquilo é possível.
Ao mesmo tempo, as cenas são
tão bem construídas que logo
esquecemos nossa inquietação
e deixamo-nos levar por um "e
por que não?".
Sim, por um lado a guerra
torna tudo possível. Mas não é
sobre isso que se apóia "A Espiã", e sim sobre a contemporânea descrença na narrativa. É
como se Verhoeven jogasse o
espectador contra o seu próprio ceticismo: é justamente
por resistir à narrativa que ele
se deixará levar pelas imagens.
E, quando está embalado por
elas, Verhoeven providencia
uma nova reviravolta, uma nova ambigüidade no rosto dos
personagens, um novo mal-estar que o retire de seu conforto
(exemplos de momentos de
mal-estar: quando fustiga o
protestantismo holandês;
quando observa o anti-semitismo infiltrado na Resistência).
É por desafiar de forma tão
aberta as convenções cinematográficas que Paul Verhoeven
tem sido vítima de uma verdadeira campanha de difamação a
cada filme que faz, de "Showgirls" a "Tropas Estelares".
"A Espiã" chega ao Brasil vítima de um título nulo ("O Livro
Negro" -com mais de um sentido- seria mais fiel ao original
e mais interessante). Talvez ele
ajude, em sua platitude, a exorcizar alguns dos mal-entendidos que rondam a carreira desse notável autor.
A ESPIÃ
Direção: Paul Verhoeven
Produção: Holanda/Alemanha/Bélgica, 2006
Com: Carice van Houten, Sebastian Koch e Thom Hoffman
Onde: a partir de hoje no Bristol 5, Reserva Cultural, IG Cine e circuito
Avaliação: ótimo
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