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MARCELO COELHO
Cegueira da linguagem
Assumir uma postura. Tirar um posicionamento.
Promover um reajuste de tarifas.
Ficar no aguardo de uma chamada. Levar um trabalho junto às
populações carentes.
Expressões desse tipo vêm sendo
colecionadas há décadas por Teixeira Coelho, ensaísta e professor
da Escola de Comunicações e Artes da USP. Constam de seu "Dicionário do Brasileiro de Bolso",
que a editora Arx lançou há pouco. Trata-se da terceira edição, revista e aumentada, de um livro
publicado no início da década de
90.
Desde então, os eufemismos, o
palavreado pedante e tecnocrático, a enrolação verbal, as barbaridades do economês, do propagandês e do marquetês não cessaram
de se multiplicar em nosso país.
Teixeira Coelho dedica-lhes verbetes curtos, implacáveis, por vezes irritadíssimos, e nem sempre
tão irônicos quanto seria de esperar.
"Teto salarial"? O autor comenta: "O salário tem sempre um teto; os preços, um piso. Essas duas
palavras são, em si, todo um compêndio de ideologia e economia
política desmascaradas".
"Operar uma mudança"? O verbete vai ao ponto: "Se fosse para
valer, bastaria "mudar'". Do mesmo modo, "operacionalidade" é
uma palavra suspeita. Teixeira
Coelho cita a seguinte frase, de
um engenheiro de siderúrgica entrevistado na televisão: "Vamos
fazer o possível para colocar o forno em condições de operacionalidade o mais rápido possível". Segue-se o comentário: "Se fosse só
para fazer funcionar de novo,
bastaria um mecânico".
Não entendo nada de siderurgia, é claro (e imagino que Teixeira Coelho também não), mas o
verbete sugere muita coisa. Uma
possível origem das complicações
do palavreado tecnocrático estaria no fato de que, em determinadas áreas, as diferenças de salário, de cargo, de status social nada
têm a ver com a verdadeira qualificação técnica das pessoas.
Um profissional experiente,
mas sem diploma universitário
ou cursos de pós-graduação, talvez possa resolver muitos problemas complexos no seu ofício. A
distinção de classe se impõe, entretanto, pelo vocabulário. Tudo
aquilo que seria resultado do mero bom senso ou conhecimento
prático, ao alcance do técnico ou
administrador de nível médio, terá de complicar-se artificialmente
numa fraseologia que este ou
aquele curso universitário cobra
caro para ensinar. A disseminação de palavras em inglês
-"downsizing", "upgrading",
"trade-off", "stand by", "agenda
setting" etc.- sem dúvida corresponde à mesma necessidade.
Mas a preferência pelas palavras estrangeiras, pelos circunlóquios, pelas conjunções verbais
("vou ir", "estarei passando" etc.)
é só uma das várias "perversões
de linguagem" apontadas por
Teixeira Coelho. Ele também nota, por exemplo, o gosto pelo impreciso, pelo genérico, em detrimento do concreto, do imediato.
Assim, muita gente diz "espaço"
quando quer dizer "lugar",
"quarto", ou "sala"; na mesma linha, o dicionário registra o termo
"dependências de empregada",
que substituiu o velho "quarto de
empregada".
Aliás, já não se fala mais em
"empregada": tornou-se frequente, hoje em dia, substituir a palavra por "funcionária". Embora
"atualizada", essa edição do dicionário traz muita coisa que já
pertence ao passado. Verbetes relativos à linguagem do regime
militar ("revanchismo", "abertura", "cizânia", "subversivo") perderam bastante de sua pertinência crítica.
Teixeira Coelho implica bastante com o hábito, proveniente
do governo Médici, de usar palavras no aumentativo ("piscinão",
por exemplo). Era a época do
"Brasil Grande", e não havia estádio de futebol que não ganhasse
esse tipo de apelido: "Mineirão",
"Arrudão" etc. Atualmente, contudo, predomina o diminutivo infantilizador: revistas femininas só
falam nas "gordinhas", por exemplo. Isso para não lembrar o onipresente "bumbum".
O problema é que um livro desses não tem fim. O autor acerta
em cheio quando inclui no dicionário palavras como "sofisticado", "mix", "o fazer artístico", "a
mirada" ou "evento". Sinto falta,
contudo, de "disparar", "disponibilizar", e "desgastar", para ficar
só na letra d.
No fim, o livro produz uma certa vertigem. Quase toda frase, toda expressão consagrada, parece
suspeita e mereceria ser incluída
no dicionário de Teixeira Coelho.
O próprio autor usa expressões
como "no bojo da ditadura" e observa que a "língua perversa" tem
tido "profunda penetração" na
sociedade... Na contracapa, lemos
que o livro "realiza a dissecação
de uma cultura pública que se liquefaz numa linguagem cujo traço principal é a perda do sentido
ético da própria linguagem". Frase à altura dos horrores que Teixeira Coelho denuncia.
Que fazer? Ou melhor: que falar? Talvez toda linguagem "política", que visa a uma intervenção
na esfera pública, seja em certa
medida incapaz de evitar o clichê,
ou no mínimo certa cegueira
-que corresponde a todos os
conceitos que não questiona, que
pressupõe compartilhados com o
leitor.
Uma linguagem absolutamente
pura e verdadeira, se isso é possível, seria a utilizada pelos grandes escritores; uma obra-prima literária sem dúvida é capaz de resistir à degradação e à manipulação de seus sentidos. Mas uma
obra desse tipo se entrega à construção de uma outra linguagem,
de um outro mundo -coisas que
o panfleto, o artigo, o verbete de
dicionário não são capazes de
criar. Quando muito, apontam
com vigor -é o caso do "Dicionário do Brasileiro de Bolso"- a
necessidade de que isso aconteça.
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