São Paulo, quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

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MARCELO COELHO

Cegueira da linguagem

Assumir uma postura. Tirar um posicionamento. Promover um reajuste de tarifas. Ficar no aguardo de uma chamada. Levar um trabalho junto às populações carentes.
Expressões desse tipo vêm sendo colecionadas há décadas por Teixeira Coelho, ensaísta e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. Constam de seu "Dicionário do Brasileiro de Bolso", que a editora Arx lançou há pouco. Trata-se da terceira edição, revista e aumentada, de um livro publicado no início da década de 90.
Desde então, os eufemismos, o palavreado pedante e tecnocrático, a enrolação verbal, as barbaridades do economês, do propagandês e do marquetês não cessaram de se multiplicar em nosso país. Teixeira Coelho dedica-lhes verbetes curtos, implacáveis, por vezes irritadíssimos, e nem sempre tão irônicos quanto seria de esperar.
"Teto salarial"? O autor comenta: "O salário tem sempre um teto; os preços, um piso. Essas duas palavras são, em si, todo um compêndio de ideologia e economia política desmascaradas".
"Operar uma mudança"? O verbete vai ao ponto: "Se fosse para valer, bastaria "mudar'". Do mesmo modo, "operacionalidade" é uma palavra suspeita. Teixeira Coelho cita a seguinte frase, de um engenheiro de siderúrgica entrevistado na televisão: "Vamos fazer o possível para colocar o forno em condições de operacionalidade o mais rápido possível". Segue-se o comentário: "Se fosse só para fazer funcionar de novo, bastaria um mecânico".
Não entendo nada de siderurgia, é claro (e imagino que Teixeira Coelho também não), mas o verbete sugere muita coisa. Uma possível origem das complicações do palavreado tecnocrático estaria no fato de que, em determinadas áreas, as diferenças de salário, de cargo, de status social nada têm a ver com a verdadeira qualificação técnica das pessoas.
Um profissional experiente, mas sem diploma universitário ou cursos de pós-graduação, talvez possa resolver muitos problemas complexos no seu ofício. A distinção de classe se impõe, entretanto, pelo vocabulário. Tudo aquilo que seria resultado do mero bom senso ou conhecimento prático, ao alcance do técnico ou administrador de nível médio, terá de complicar-se artificialmente numa fraseologia que este ou aquele curso universitário cobra caro para ensinar. A disseminação de palavras em inglês -"downsizing", "upgrading", "trade-off", "stand by", "agenda setting" etc.- sem dúvida corresponde à mesma necessidade.
Mas a preferência pelas palavras estrangeiras, pelos circunlóquios, pelas conjunções verbais ("vou ir", "estarei passando" etc.) é só uma das várias "perversões de linguagem" apontadas por Teixeira Coelho. Ele também nota, por exemplo, o gosto pelo impreciso, pelo genérico, em detrimento do concreto, do imediato. Assim, muita gente diz "espaço" quando quer dizer "lugar", "quarto", ou "sala"; na mesma linha, o dicionário registra o termo "dependências de empregada", que substituiu o velho "quarto de empregada".
Aliás, já não se fala mais em "empregada": tornou-se frequente, hoje em dia, substituir a palavra por "funcionária". Embora "atualizada", essa edição do dicionário traz muita coisa que já pertence ao passado. Verbetes relativos à linguagem do regime militar ("revanchismo", "abertura", "cizânia", "subversivo") perderam bastante de sua pertinência crítica.
Teixeira Coelho implica bastante com o hábito, proveniente do governo Médici, de usar palavras no aumentativo ("piscinão", por exemplo). Era a época do "Brasil Grande", e não havia estádio de futebol que não ganhasse esse tipo de apelido: "Mineirão", "Arrudão" etc. Atualmente, contudo, predomina o diminutivo infantilizador: revistas femininas só falam nas "gordinhas", por exemplo. Isso para não lembrar o onipresente "bumbum".
O problema é que um livro desses não tem fim. O autor acerta em cheio quando inclui no dicionário palavras como "sofisticado", "mix", "o fazer artístico", "a mirada" ou "evento". Sinto falta, contudo, de "disparar", "disponibilizar", e "desgastar", para ficar só na letra d.
No fim, o livro produz uma certa vertigem. Quase toda frase, toda expressão consagrada, parece suspeita e mereceria ser incluída no dicionário de Teixeira Coelho. O próprio autor usa expressões como "no bojo da ditadura" e observa que a "língua perversa" tem tido "profunda penetração" na sociedade... Na contracapa, lemos que o livro "realiza a dissecação de uma cultura pública que se liquefaz numa linguagem cujo traço principal é a perda do sentido ético da própria linguagem". Frase à altura dos horrores que Teixeira Coelho denuncia.
Que fazer? Ou melhor: que falar? Talvez toda linguagem "política", que visa a uma intervenção na esfera pública, seja em certa medida incapaz de evitar o clichê, ou no mínimo certa cegueira -que corresponde a todos os conceitos que não questiona, que pressupõe compartilhados com o leitor.
Uma linguagem absolutamente pura e verdadeira, se isso é possível, seria a utilizada pelos grandes escritores; uma obra-prima literária sem dúvida é capaz de resistir à degradação e à manipulação de seus sentidos. Mas uma obra desse tipo se entrega à construção de uma outra linguagem, de um outro mundo -coisas que o panfleto, o artigo, o verbete de dicionário não são capazes de criar. Quando muito, apontam com vigor -é o caso do "Dicionário do Brasileiro de Bolso"- a necessidade de que isso aconteça.

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