São Paulo, sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Itinerário alternativo de sucesso

Sempre acreditei em mim. Tinha a certeza de que, um dia, o mundo, o povo, todos compreenderiam o meu valor. Foi assim que, desde criança, comecei a tocar violão, pandeiro, fagote e guitarra elétrica. Com tanta mistura e tantos caminhos abertos para o meu futuro, impossível que não desse certo num deles, ou em todos, como era do meu desejo. Mesmo assim, custou-me chegar ao ponto ótimo que pretendia. Não me desesperei. Trazia na testa o sinete da vitória.
Nem me surpreendi quando, aos 24 anos, finalmente os caras me descobriram. Durante muito tempo, eu denunciava sempre que podia e mesmo quando não podia a deslavada decadência da música popular brasileira. Tirando eu, o Manteiga e o Edu, que já tocou num show do Ricardinho Monteiro, mas logo se vendeu ao consumo e chegou à ignomínia de fazer arranjos para o Roberto Carlos, tudo é porcaria. E digo porcaria para não dizer o que todos dizem: uma merda.
Já gramei muito baixo-astral por aí. Houve tempo em que, para comer, tinha de pedir emprestado aos velhos e aí pintava aquela sujeira toda, eles queriam que eu estudasse para executivo, o velho era amigo de um cara da Petrobras que ganhava os tubos, prometera me contratar e rastrear; não culpo minha família, era careta havia mil gerações, ela achava que artista era tudo drogado, tudo homossexual. Eu dizia aos velhos que nem todo mundo era gay, citava o caso do Vinícius de Moraes, do Pixinguinha, mas eles cismavam com as minhas roupas, com os trecos que eu usava no pescoço e nos tornozelos, não gostavam dos meus amigos, um deles foi proibido de freqüentar a nossa casa porque, no Carnaval de 1998, desfilara na passarela do Paulistinha, no Baile dos Enxutos, vestido de "Cleópatra e as Raízes da Floresta Amazônica" -uma edição gay da revista "Fatos&Fotos" deu a foto em página dupla, foi um escândalo; o pai, que no fundo curtia a revista, ficou possesso, dava gritos na hora do jantar: "Esse veado nunca mais põe os pés nesta casa, casa de família!".
Por simetria, também eram contra a maconha, revistavam minhas coisas e roupas pensando que eu aderira à erva que eles consideravam maldita, nunca desconfiaram que não me passava para droga de fodido, nunca transei com a erva, meu negócio era o pó, mas coroa não entende a hierarquia, quem é quem e o que é o que, nunca puderam me compreender, cheguei a pensar num analista. Tomei informações, me aconselharam um dr. Carneiro, famoso em Ipanema, era analista da Leila Diniz, do Cazuza, de todo o povo eleito.
Para fazer a vontade da turma, transei uma de análise, saí de casa e cheguei a morar com um cara que entendia de Freud, de Lacan, de Hélio Pellegrino, tentei descobrir meu id, meu ego -esses caras que não entendem de nada e não sabem levar ninguém a lugar algum. Uma noite me pegaram na rua, eu procurava a explicação para um complexo antigo, saber os motivos que os outros tinham para serem diferentes de mim, os caras da polícia me estranharam, passei cinco dias numa cela onde todo mundo era gay, mas foi lá que encontrei um sujeito muito bacana que me abriu o caminho -todos os caminhos.
Quando fomos soltos, fizemos uma romaria à Menininha do Gantois, depois fizemos o caminho de Santiago, tomamos o santo-daime e tomamos outras coisas -e aí tudo foi ficando mais fácil. Voltei para o Rio, onde me catalogaram, apesar de ser mineiro de Montes Claros, como o único baiano da Constelação do Urso Maior, um quinteto da pesada que tocava num inferninho da galeria Alaska, e eu só naquela, esperando a boca, até que o quinteto virou quarteto, depois terceto, depois duo, finalmente tudo ficou concentrado e resumido em mim, carreira solo, mais densa, autêntica, realmente nova.
Gravei um disco experimental, a crítica malhou, quer dizer, não tomou conhecimento, mas aí eu já não estava mais naquela de sucesso, queria pesquisar caminhos novos. E foi aí que pintou a glória, aquela música do "Tomara que Aconteça um Troço", a Globo me convidou para um tape, eu esnobei, mas aceitei aparecer num show alternativo nas areias do Arpoador. Um tremendo sucesso, não foi mole o que choveu de proposta em cima de mim, mas recusei me vender ao mercado. Você saca, apressado come cru e eu não queria comer nada, minha fome era outra.
Depois, sim, veio o aniversário da morte de Elis Regina, um ano, sabe, como pode? Ela foi embora e tudo continuou, o sol nascendo todas as manhãs, a chuva chovendo, o mar no seu lugar, não compreendi como o mundo podia continuar sendo o mesmo e fiz o meu protesto, a minha obra-prima, "Ellis, a Comedora de Estrelas". No início, fiquei em dúvida se usava o ré menor ou o dó maior, mas minha guitarra elétrica estava em curto e apelei para algo mais tradicional.
Saiu o que saiu. Fui considerado um divisor de águas. Um crítico especializado declarou que, desde Mozart e Walter Alfaiate, não surgia nada de tão definitivo. E aí fui entrevistado pelo Pedro Bial.


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