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CARLOS HEITOR CONY
Itinerário alternativo de sucesso
Sempre acreditei em mim.
Tinha a certeza de que, um
dia, o mundo, o povo, todos compreenderiam o meu valor. Foi assim que, desde criança, comecei a
tocar violão, pandeiro, fagote e
guitarra elétrica. Com tanta mistura e tantos caminhos abertos
para o meu futuro, impossível que
não desse certo num deles, ou em
todos, como era do meu desejo.
Mesmo assim, custou-me chegar
ao ponto ótimo que pretendia.
Não me desesperei. Trazia na testa o sinete da vitória.
Nem me surpreendi quando,
aos 24 anos, finalmente os caras
me descobriram. Durante muito
tempo, eu denunciava sempre
que podia e mesmo quando não
podia a deslavada decadência da
música popular brasileira. Tirando eu, o Manteiga e o Edu, que já
tocou num show do Ricardinho
Monteiro, mas logo se vendeu ao
consumo e chegou à ignomínia de
fazer arranjos para o Roberto
Carlos, tudo é porcaria. E digo
porcaria para não dizer o que todos dizem: uma merda.
Já gramei muito baixo-astral
por aí. Houve tempo em que, para
comer, tinha de pedir emprestado
aos velhos e aí pintava aquela sujeira toda, eles queriam que eu estudasse para executivo, o velho
era amigo de um cara da Petrobras que ganhava os tubos, prometera me contratar e rastrear;
não culpo minha família, era careta havia mil gerações, ela achava que artista era tudo drogado,
tudo homossexual. Eu dizia aos
velhos que nem todo mundo era
gay, citava o caso do Vinícius de
Moraes, do Pixinguinha, mas eles
cismavam com as minhas roupas,
com os trecos que eu usava no
pescoço e nos tornozelos, não gostavam dos meus amigos, um deles
foi proibido de freqüentar a nossa
casa porque, no Carnaval de
1998, desfilara na passarela do
Paulistinha, no Baile dos Enxutos, vestido de "Cleópatra e as
Raízes da Floresta Amazônica"
-uma edição gay da revista "Fatos&Fotos" deu a foto em página
dupla, foi um escândalo; o pai,
que no fundo curtia a revista, ficou possesso, dava gritos na hora
do jantar: "Esse veado nunca
mais põe os pés nesta casa, casa
de família!".
Por simetria, também eram
contra a maconha, revistavam
minhas coisas e roupas pensando
que eu aderira à erva que eles
consideravam maldita, nunca
desconfiaram que não me passava para droga de fodido, nunca
transei com a erva, meu negócio
era o pó, mas coroa não entende a
hierarquia, quem é quem e o que
é o que, nunca puderam me compreender, cheguei a pensar num
analista. Tomei informações, me
aconselharam um dr. Carneiro,
famoso em Ipanema, era analista
da Leila Diniz, do Cazuza, de todo o povo eleito.
Para fazer a vontade da turma,
transei uma de análise, saí de casa e cheguei a morar com um cara
que entendia de Freud, de Lacan,
de Hélio Pellegrino, tentei descobrir meu id, meu ego -esses caras que não entendem de nada e
não sabem levar ninguém a lugar
algum. Uma noite me pegaram
na rua, eu procurava a explicação
para um complexo antigo, saber
os motivos que os outros tinham
para serem diferentes de mim, os
caras da polícia me estranharam,
passei cinco dias numa cela onde
todo mundo era gay, mas foi lá
que encontrei um sujeito muito
bacana que me abriu o caminho
-todos os caminhos.
Quando fomos soltos, fizemos
uma romaria à Menininha do
Gantois, depois fizemos o caminho de Santiago, tomamos o santo-daime e tomamos outras coisas -e aí tudo foi ficando mais
fácil. Voltei para o Rio, onde me
catalogaram, apesar de ser mineiro de Montes Claros, como o único baiano da Constelação do Urso
Maior, um quinteto da pesada
que tocava num inferninho da
galeria Alaska, e eu só naquela,
esperando a boca, até que o quinteto virou quarteto, depois terceto, depois duo, finalmente tudo ficou concentrado e resumido em
mim, carreira solo, mais densa,
autêntica, realmente nova.
Gravei um disco experimental,
a crítica malhou, quer dizer, não
tomou conhecimento, mas aí eu
já não estava mais naquela de sucesso, queria pesquisar caminhos
novos. E foi aí que pintou a glória,
aquela música do "Tomara que
Aconteça um Troço", a Globo me
convidou para um tape, eu esnobei, mas aceitei aparecer num
show alternativo nas areias do
Arpoador. Um tremendo sucesso,
não foi mole o que choveu de proposta em cima de mim, mas recusei me vender ao mercado. Você
saca, apressado come cru e eu não
queria comer nada, minha fome
era outra.
Depois, sim, veio o aniversário
da morte de Elis Regina, um ano,
sabe, como pode? Ela foi embora e
tudo continuou, o sol nascendo
todas as manhãs, a chuva chovendo, o mar no seu lugar, não
compreendi como o mundo podia
continuar sendo o mesmo e fiz o
meu protesto, a minha obra-prima, "Ellis, a Comedora de Estrelas". No início, fiquei em dúvida
se usava o ré menor ou o dó
maior, mas minha guitarra elétrica estava em curto e apelei para
algo mais tradicional.
Saiu o que saiu. Fui considerado um divisor de águas. Um crítico especializado declarou que,
desde Mozart e Walter Alfaiate,
não surgia nada de tão definitivo.
E aí fui entrevistado pelo Pedro
Bial.
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