São Paulo, sexta-feira, 11 de março de 2005

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"DESDE QUE OTAR PARTIU"

Estreante cria papel para o tempo

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

"Desde que Otar Partiu" carrega características que poderiam fazer dele um típico filme "europeu" -no mau sentido. A ver: elenco binacional e diálogos que se alternam entre o francês e o russo (atendendo, portanto, a pré-requisitos básicos para angariar fundos de co-produção), uma história de teor emotivo centrada em três mulheres (como um roteiro pré-fabricado para agradar às comissões de seleção) e o fundamental pano de fundo político de uma Europa despedaçada. De alguma forma, porém, o filme de estréia de Julie Bertucelli contorna as armadilhas que cria para si mesmo.
Aparentemente, Bertucelli centra seu filme no relacionamento entre a jovem Ada, sua mãe, Marina, e sua avó (de Ada) Eka. Elas vivem sob o mesmo teto em Tbilisi, capital da Geórgia. Mas o filme guarda um quarto personagem, invisível, que é o tempo.
Ada, Marina e Eka não são apenas personagens, mas dispositivos que permitem a convivência de três tempos diferentes em uma mesma imagem. A mais velha, Eka (Esther Gorintin), é a Europa pré-dissolução da Cortina de Ferro. Stalinista, nega os crimes cometidos pelo ditador e vê nas mazelas da república falida pós-Cortina de Ferro o pretexto para saudosismos políticos. Marina (Nino Khoumassouridze) é a desilusão em pessoa, encarnação da amargura de uma geração traída. E Ada (Dinara Droukarova) é o tempo atual, a juventude sem perspectivas que pensa na migração como forma de sair da inércia e concretizar seus desejos. A "máquina" temporal do filme se movimenta com o auxílio de um outro personagem ausente: Otar, filho de Eka, formado em medicina, ganha a vida em Paris como pedreiro. Idealizado pela mãe, ele é claramente uma das forças que a mantêm viva.
Ex-assistente de Otar Iosseliani, Krzystof Kieslowski e Bertrand Tavernier, Julie Bertucelli busca um rigor na maneira de filmar cada vez mais raro entre cineastas estreantes, em geral facilmente entregues à tentação do "filme portfólio" (um demonstrativo de técnicas e talentos que garanta contratos futuros). Seu estilo, na maior parte do tempo, lembra um bocado o de Otar Iosseliani (que, aliás, é franco-georgiano), autor de uma escola que garante um olhar atento sobre a vida humana.


Desde que Otar Partiu
Depuis Qu'Otar Est Parti
   
Direção: Julie Bertucelli
Produção: França/Bélgica, 2003
Com: Esther Gorintin, Nino Khoumassouridze, Dinara Droukarova
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco


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