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CARLOS HEITOR CONY
O grande sinal dos tempos
Está previsto nos livros e proclamado pelos profetas de todos os tempos e feitios: o mar subirá e tragará, com suas ondas, as
cidades dos homens. A terra se
transformará numa bola de fogo,
arderá em 50 C e derreterá os gelos polares que engrossarão os
oceanos e inundarão as casas, os
jardins, as garagens e o metrô.
Quem o diz não é o nordestino
barbado e magro, saído de um filme de Glauber Rocha, gritando
aos ventos que o sertão virará
mar e o mar virará sertão. Tampouco os santos que de norte a sul
percorrem o chão da pátria, bordão colorido à mão, sino preso
nas canelas magras, anunciando
a todos, irmãos e irmãs, que os
tempos são chegados, as profecias,
cumpridas e que o fim do mundo
está próximo.
Nem mesmo o recente tsunami,
que fez estragos em mares e terras
distantes, pode ser incluído entre
os sinais da destruição que nos espera. A tragédia do ano passado
ficou limitada a uma cólica nos
intestinos da Terra, acomodação
de placas localizada nas entranhas do oceano, nem seria caso
para uma intervenção cirúrgica
de baixo risco, como a extração
de um apêndice supurado, de
uma vesícula avariada, de um
pólipo inofensivo. Seria caso para
um pouco de bicarbonato de sódio, um Sonrisal imaculado como
uma hóstia que provocaria uma
convulsão interna diluindo o assombroso espasmo que veio para
fora, provocando tal e tamanho
desastre.
Quem diz que as coisas estão
entrando na zona do vinagre final são os Departamentos de Estado, não os Estados do agora
chamado baixo clero, mas Estados lá de cima, arcebispos e cardeais que ocupam o topo da pirâmide. Nem adianta perguntar
que Estado é. Trata-se do próprio,
ou seja, do Departamento de Estado da nação mais rica e poderosa do mundo, que periodicamente avisa a todos nós, modestos sacristãos do santo ofício da vida,
que tudo e todos estão indo para
as cabeceiras. Não entendo muito
bem como chegaram a essas terríveis conclusões. Desde criança,
muito me impressionavam os
loucos de estrada que andavam
pelas ruas e pelos caminhos, sem
destino, olhos acesos pela verdade
e famintos pela fome, dizendo
exatamente isso que acaba de ser
dito por engravatados Prêmios
Nobel e Ph.Ds de alta fidalguia.
Em outra dimensão e com estilo
melhor, Rubem Braga também o
disse, 30 e tantos anos atrás, numa crônica que se tornou antológica: "Ai de ti, Copacabana!". É
uma imagem antiga, que freqüenta o folclore dos cariocas à
beira-mar plantados, essa de as
ondas invadirem o nosso chão,
com os peixes, os grandes robalos
prateados, o corpo triangular e
repugnante das arraias nadando
em silêncio, deslumbradas pelas
nossas salas e alcovas.
Diante de tantos e tão nutridos
sinais, os mais cautos, não necessariamente os mais apavorados,
já tomam providências para evitar o desastre, procurando colocar suas carcaças e pertences em
sítios mais altos. Aqui no Rio, sei
de um cidadão que mora no Leblon, na quadra da praia, na valorizada e agora nefasta "quadra
da praia". O mesmo charme imobiliário que valorizou o seu imóvel décadas atrás é agora a causa
de sua perdição.
Isso significa que, na primeira
reborda de vagas, seu único bem
patrimonial (um apartamento de
quatro quartos no primeiro andar, com direito a duas vagas na
garagem) estará inundado. Seu
suntuoso Jaguar, importado no
ano passado, que pode até ser
guiado por voz humana via satélite, ficará paralisado na garagem
subterrânea e, tal como o cadáver
do Titanic no fundo do oceano,
criará limo e será devorado inexoravelmente pela ferrugem.
Com a idade nem boa nem má
de 55 anos, ele sente que não terá
ânimo e saco para enfrentar as vicissitudes que nos esperam. Já
anunciou seu apartamento nos
jornais a preço de banana para
comprar uma casa em Nova Friburgo, a quase 800 metros de altitude. Até o mar bater em Friburgo, bota alguns séculos nisso. E,
quando a morte chegar, ele poderá abrigar seus ossos em lugar enxuto e digno.
No meu caso pessoal, tenho
também motivo de aflição. Moro
às margens de uma lagoa, ligada
diretamente ao oceano por um
canal que está sempre entupido.
Já recebo e sofro, periodicamente,
as mazelas daquele acidente geográfico, seguramente o mais belo
da minha cidade e do meu mundo, principalmente ao nascer e ao
morrer do dia, sobretudo às tardes, quando o sol se põe e mergulha num túmulo de fogo, desmanchando-se num cor-de-rosa cenográfico, que parece copiado das
saias das baianas da Mangueira.
Para falar com franqueza, nem
são necessários cataclismos para
que as coisas por aqui volta e
meia entrem na pior. Duas, três
vezes a cada ano, os ventos vindos
do oceano -nem precisa ser um
vendaval arrasador, basta uma
brisa amena, mas constante- revolvem o lodo que se deposita no
fundo da lagoa, matando milhares de peixes, que logo entram em
putrefação, as barriguinhas inchadas parecendo moedas prateadas ali jogadas por usuário enfastiado.
O ar cheira a morte, e ainda
bem que não se trata de nossa
morte. Há um clima de fim de
mundo, o mundo apodrecendo
ao sol forte do meio-dia, morte
suspensa no ar, doendo em nossos
olhos. Sim, um sinal dos tempos.
O que não dá para entender -eu
que nada entendo de nada- é a
obstinação, a desvairada teimosia que me prende a este chão movediço, de lama e cadáver, onde
não busco, mas tenho de servir ao
meu destino.
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