São Paulo, sexta-feira, 11 de março de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

O grande sinal dos tempos

Está previsto nos livros e proclamado pelos profetas de todos os tempos e feitios: o mar subirá e tragará, com suas ondas, as cidades dos homens. A terra se transformará numa bola de fogo, arderá em 50 C e derreterá os gelos polares que engrossarão os oceanos e inundarão as casas, os jardins, as garagens e o metrô. Quem o diz não é o nordestino barbado e magro, saído de um filme de Glauber Rocha, gritando aos ventos que o sertão virará mar e o mar virará sertão. Tampouco os santos que de norte a sul percorrem o chão da pátria, bordão colorido à mão, sino preso nas canelas magras, anunciando a todos, irmãos e irmãs, que os tempos são chegados, as profecias, cumpridas e que o fim do mundo está próximo.
Nem mesmo o recente tsunami, que fez estragos em mares e terras distantes, pode ser incluído entre os sinais da destruição que nos espera. A tragédia do ano passado ficou limitada a uma cólica nos intestinos da Terra, acomodação de placas localizada nas entranhas do oceano, nem seria caso para uma intervenção cirúrgica de baixo risco, como a extração de um apêndice supurado, de uma vesícula avariada, de um pólipo inofensivo. Seria caso para um pouco de bicarbonato de sódio, um Sonrisal imaculado como uma hóstia que provocaria uma convulsão interna diluindo o assombroso espasmo que veio para fora, provocando tal e tamanho desastre.
Quem diz que as coisas estão entrando na zona do vinagre final são os Departamentos de Estado, não os Estados do agora chamado baixo clero, mas Estados lá de cima, arcebispos e cardeais que ocupam o topo da pirâmide. Nem adianta perguntar que Estado é. Trata-se do próprio, ou seja, do Departamento de Estado da nação mais rica e poderosa do mundo, que periodicamente avisa a todos nós, modestos sacristãos do santo ofício da vida, que tudo e todos estão indo para as cabeceiras. Não entendo muito bem como chegaram a essas terríveis conclusões. Desde criança, muito me impressionavam os loucos de estrada que andavam pelas ruas e pelos caminhos, sem destino, olhos acesos pela verdade e famintos pela fome, dizendo exatamente isso que acaba de ser dito por engravatados Prêmios Nobel e Ph.Ds de alta fidalguia.
Em outra dimensão e com estilo melhor, Rubem Braga também o disse, 30 e tantos anos atrás, numa crônica que se tornou antológica: "Ai de ti, Copacabana!". É uma imagem antiga, que freqüenta o folclore dos cariocas à beira-mar plantados, essa de as ondas invadirem o nosso chão, com os peixes, os grandes robalos prateados, o corpo triangular e repugnante das arraias nadando em silêncio, deslumbradas pelas nossas salas e alcovas.
Diante de tantos e tão nutridos sinais, os mais cautos, não necessariamente os mais apavorados, já tomam providências para evitar o desastre, procurando colocar suas carcaças e pertences em sítios mais altos. Aqui no Rio, sei de um cidadão que mora no Leblon, na quadra da praia, na valorizada e agora nefasta "quadra da praia". O mesmo charme imobiliário que valorizou o seu imóvel décadas atrás é agora a causa de sua perdição.
Isso significa que, na primeira reborda de vagas, seu único bem patrimonial (um apartamento de quatro quartos no primeiro andar, com direito a duas vagas na garagem) estará inundado. Seu suntuoso Jaguar, importado no ano passado, que pode até ser guiado por voz humana via satélite, ficará paralisado na garagem subterrânea e, tal como o cadáver do Titanic no fundo do oceano, criará limo e será devorado inexoravelmente pela ferrugem.
Com a idade nem boa nem má de 55 anos, ele sente que não terá ânimo e saco para enfrentar as vicissitudes que nos esperam. Já anunciou seu apartamento nos jornais a preço de banana para comprar uma casa em Nova Friburgo, a quase 800 metros de altitude. Até o mar bater em Friburgo, bota alguns séculos nisso. E, quando a morte chegar, ele poderá abrigar seus ossos em lugar enxuto e digno.
No meu caso pessoal, tenho também motivo de aflição. Moro às margens de uma lagoa, ligada diretamente ao oceano por um canal que está sempre entupido. Já recebo e sofro, periodicamente, as mazelas daquele acidente geográfico, seguramente o mais belo da minha cidade e do meu mundo, principalmente ao nascer e ao morrer do dia, sobretudo às tardes, quando o sol se põe e mergulha num túmulo de fogo, desmanchando-se num cor-de-rosa cenográfico, que parece copiado das saias das baianas da Mangueira.
Para falar com franqueza, nem são necessários cataclismos para que as coisas por aqui volta e meia entrem na pior. Duas, três vezes a cada ano, os ventos vindos do oceano -nem precisa ser um vendaval arrasador, basta uma brisa amena, mas constante- revolvem o lodo que se deposita no fundo da lagoa, matando milhares de peixes, que logo entram em putrefação, as barriguinhas inchadas parecendo moedas prateadas ali jogadas por usuário enfastiado.
O ar cheira a morte, e ainda bem que não se trata de nossa morte. Há um clima de fim de mundo, o mundo apodrecendo ao sol forte do meio-dia, morte suspensa no ar, doendo em nossos olhos. Sim, um sinal dos tempos. O que não dá para entender -eu que nada entendo de nada- é a obstinação, a desvairada teimosia que me prende a este chão movediço, de lama e cadáver, onde não busco, mas tenho de servir ao meu destino.


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