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RODAPÉ
Sem álibi
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"O Estrangeiro" (1942) não é
o livro mais ousado de Albert Camus; entretanto, é possivelmente o romance mais importante da literatura francesa do
pós-guerra. A afirmação não deve
causar estranheza. Freqüentemente, o livro que fixa o nome de
um escritor em nossa galeria imaginária não corresponde ao ápice
de seu trabalho criativo.
No caso, a comparação com "A
Queda" é ilustrativa. Essa novela
de 1956, diálogo com um interlocutor que nunca aparece, numa
Amsterdã cujos canais são como
os círculos concêntricos do "inferno burguês", corresponde ao apetite moderno por alegorias cuja
estrutura materializa a instabilidade dos valores morais e da própria representação.
Entretanto, é "O Estrangeiro",
com sua luz mediterrânea iluminando o estado bruto das coisas,
sua narrativa sem sobressaltos
(plácida até mesmo quando o
protagonista descreve sua condenação à morte), que se coloca como esfinge a desafiar os intérpretes. Por feliz coincidência, estão
disponíveis hoje no Brasil três dos
melhores ensaios sobre o livro de
Camus: "Explicação de "O Estrangeiro'", de Jean-Paul Sartre (no
recém-lançado "Situações 1", editora Cosacnaify), e dois textos de
Roland Barthes incluídos no volume "Inéditos - Crítica" (editora
Martins Fontes).
Tais reflexões ajudam a compreender o paradoxo de "O Estrangeiro": um livro de enorme
impacto sobre a literatura francesa, crucial para o surgimento do
nouveau roman (como detectou
Barthes em "O Grau Zero da Escrita") e, no entanto, de caráter
antimoderno.
A aparente contradição se deve
ao fato de haver um vínculo estreito entre o romance e o ensaio
"O Mito de Sísifo", no qual Camus
sistematiza uma idéia do "absurdo" que será fonte dos mal-entendidos que o vinculam ao existencialismo. Porém, como salienta o
próprio Sartre, aquilo que garante
a Camus sua "atualidade" pertence a uma tradição bem mais
antiga:
"A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a
ininteligibilidade do real, o acaso,
eis os pólos do absurdo. Na verdade, esses não são temas muito novos e Camus não os apresenta como tais. Eles foram inventariados,
desde o século 17, por uma certa
espécie de razão seca, curta e contemplativa que é propriamente
francesa: serviram de lugares-comuns ao pessimismo clássico."
Do mesmo modo, Barthes afirmará em ""O Estrangeiro", Romance Solar" ser este "o primeiro
romance clássico do pós-guerra",
na esteira de "A Princesa de Clèves" (1678) -formulação cara a
Camus, que no ensaio "A Inteligência e o Cadafalso" extraíra do
livro de Madame de Lafayette
uma poética da repetição como fidelidade a "uma certa concepção
de homem que a inteligência se
esforça em colocar em evidência
em meio a um pequeno número
de situações".
Nada mais contrário, portanto,
à obsessão pelo novo, àquela "tradição da ruptura" que Octavio
Paz enxerga como traço dominante da modernidade. Albert
Camus pode até tomar de empréstimo, diz Sartre, a técnica espasmódica do romance americano;
mas ele o faz menos por ambição
renovadora do que para dar forma a uma iluminação: "Todas as
frases de seu livro são equivalentes, como são equivalentes todas
as experiências do homem absurdo".
Meursault, protagonista de "O
Estrangeiro", assiste ao enterro da
mãe, vai ao cinema com Marie,
ajuda um cafetão num caso crapuloso e mata um árabe numa
praia argelina "por causa do sol",
sempre dentro da mesma atmosfera de gratuidade.
O absurdo é a equivalência total
entre tudo, uma reiteração sem
porvir: não existe ascese ou subversão possível. Por isso, diz Barthes em "Reflexão sobre o Estilo
de "O Estrangeiro'", Camus não
abdica dos "habituais procedimentos da retórica clássica"; afinal, "a ausência de estilo não seria nada mais do que uma espécie
de estilística da consolação" -o
que, mais uma vez, aparta sua
prosa controlada de uma modernidade confiante no poder anárquico da palavra (que Barthes
identifica num Céline).
Ao mesmo tempo, "O Estrangeiro" funda o "mito da consciência
desterrada" do "homem desprovido de álibis; apartado, por sua lucidez, dos refúgios anteriores
(Deus, Razão)" -refúgios aos
quais poderíamos acrescentar a
própria literatura.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
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