São Paulo, sábado, 11 de março de 2006

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RODAPÉ

Sem álibi

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"O Estrangeiro" (1942) não é o livro mais ousado de Albert Camus; entretanto, é possivelmente o romance mais importante da literatura francesa do pós-guerra. A afirmação não deve causar estranheza. Freqüentemente, o livro que fixa o nome de um escritor em nossa galeria imaginária não corresponde ao ápice de seu trabalho criativo.
No caso, a comparação com "A Queda" é ilustrativa. Essa novela de 1956, diálogo com um interlocutor que nunca aparece, numa Amsterdã cujos canais são como os círculos concêntricos do "inferno burguês", corresponde ao apetite moderno por alegorias cuja estrutura materializa a instabilidade dos valores morais e da própria representação.
Entretanto, é "O Estrangeiro", com sua luz mediterrânea iluminando o estado bruto das coisas, sua narrativa sem sobressaltos (plácida até mesmo quando o protagonista descreve sua condenação à morte), que se coloca como esfinge a desafiar os intérpretes. Por feliz coincidência, estão disponíveis hoje no Brasil três dos melhores ensaios sobre o livro de Camus: "Explicação de "O Estrangeiro'", de Jean-Paul Sartre (no recém-lançado "Situações 1", editora Cosacnaify), e dois textos de Roland Barthes incluídos no volume "Inéditos - Crítica" (editora Martins Fontes).
Tais reflexões ajudam a compreender o paradoxo de "O Estrangeiro": um livro de enorme impacto sobre a literatura francesa, crucial para o surgimento do nouveau roman (como detectou Barthes em "O Grau Zero da Escrita") e, no entanto, de caráter antimoderno.
A aparente contradição se deve ao fato de haver um vínculo estreito entre o romance e o ensaio "O Mito de Sísifo", no qual Camus sistematiza uma idéia do "absurdo" que será fonte dos mal-entendidos que o vinculam ao existencialismo. Porém, como salienta o próprio Sartre, aquilo que garante a Camus sua "atualidade" pertence a uma tradição bem mais antiga:
"A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos do absurdo. Na verdade, esses não são temas muito novos e Camus não os apresenta como tais. Eles foram inventariados, desde o século 17, por uma certa espécie de razão seca, curta e contemplativa que é propriamente francesa: serviram de lugares-comuns ao pessimismo clássico."
Do mesmo modo, Barthes afirmará em ""O Estrangeiro", Romance Solar" ser este "o primeiro romance clássico do pós-guerra", na esteira de "A Princesa de Clèves" (1678) -formulação cara a Camus, que no ensaio "A Inteligência e o Cadafalso" extraíra do livro de Madame de Lafayette uma poética da repetição como fidelidade a "uma certa concepção de homem que a inteligência se esforça em colocar em evidência em meio a um pequeno número de situações".
Nada mais contrário, portanto, à obsessão pelo novo, àquela "tradição da ruptura" que Octavio Paz enxerga como traço dominante da modernidade. Albert Camus pode até tomar de empréstimo, diz Sartre, a técnica espasmódica do romance americano; mas ele o faz menos por ambição renovadora do que para dar forma a uma iluminação: "Todas as frases de seu livro são equivalentes, como são equivalentes todas as experiências do homem absurdo".
Meursault, protagonista de "O Estrangeiro", assiste ao enterro da mãe, vai ao cinema com Marie, ajuda um cafetão num caso crapuloso e mata um árabe numa praia argelina "por causa do sol", sempre dentro da mesma atmosfera de gratuidade.
O absurdo é a equivalência total entre tudo, uma reiteração sem porvir: não existe ascese ou subversão possível. Por isso, diz Barthes em "Reflexão sobre o Estilo de "O Estrangeiro'", Camus não abdica dos "habituais procedimentos da retórica clássica"; afinal, "a ausência de estilo não seria nada mais do que uma espécie de estilística da consolação" -o que, mais uma vez, aparta sua prosa controlada de uma modernidade confiante no poder anárquico da palavra (que Barthes identifica num Céline).
Ao mesmo tempo, "O Estrangeiro" funda o "mito da consciência desterrada" do "homem desprovido de álibis; apartado, por sua lucidez, dos refúgios anteriores (Deus, Razão)" -refúgios aos quais poderíamos acrescentar a própria literatura.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço


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