São Paulo, quinta-feira, 11 de maio de 2000


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CRÍTICA

Perfeita e acomodada, flerta com o conservadorismo

DO ENVIADO AO RIO

O Brasil já está acostumado à excelência artística de Marisa Monte. "Memórias, Crônicas e Declarações de Amor" cumpre à risca, oferecendo beleza à farta e esbanjando aprumo técnico.
É, dir-se-ia, milimétrico, e justo aí estão escondidos alguns senões. Em primeiro lugar, é milimétrico demais, mais talvez do que nossos vãos defeitos possam suportar. Seu passeio pela beleza exala assepsia (de novo) e cálculo, em que lembra Walter Salles.
Depois, Marisa é artista que gosta de inflar expectativas, de se guardar para depois explodir em cores. Ora, sendo assim "Memórias..." é decepcionante. Avança pouquíssimos milímetros adiante de "Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão" (94), aventura de estúdio anterior.
Se naquele disco Marisa fixava uma metodologia e lipoaspirava excessos anteriores, aqui xeroca a estratégia bem-sucedida. Surdos virados e guitarras à parte, o novo CD é estruturalmente xipófago do anterior em escolhas estéticas, recortes, truques de atração.
Algum problema? Não a princípio, mas é bom assinalar que tal acomodação em artista tão jovem é ponto para o conservadorismo -não há novidade nem diferença na dispensa da ousadia, no culto ao meio; é a mais antiga das profissões preguiçosas.
"Memórias..." é cândido em vários termos. O sentimentalismo emoldurado por macios arranjos de corda arredonda o conceito "romântico". Mais, a circunscrição da solidão, definida por ela, aproxima-a do sublime (e aí a história das fotos de si tiradas por si resulta menos egotrip mala que investigação daquela funda modalidade de dor).
Mas Marisa o faz pelo meio. Temas amorosos como "Não Vá Embora", "Não É Fácil" e "Tema de Amor" são tão belos como tolos. Resultam deliciosos, e mais ainda resulta a faixa de rádio, "Amor I Love You", (in)voluntariamente kitsch em seu coro de rãs, nos "póins" e no declame bem torneado de Eça de Queiroz por Arnaldo Antunes.
Fortificando a parceria com Carlinhos Bown e com Arnaldo, a autora neutraliza tanto as letras irracionalistas daquele quanto a poesia mais elaborada desse. Na média, um mais um mais um dividido por três é igual a um.
Talvez por isso a melhor entre as novas composições (junto com "Sou Sua Sabiá", de Caetano, um diamante "tristíssimo", como enceta a letra) seja "Gentileza", de Marisa sozinha. É gostosa e prosaica composição, ainda que uma moça tão rigorosa não pudesse, nunca, permitir o erro de concordância de "só ficou no muro tristeza e tinta fresca" (só "ficaram", não é, Marisa? Aliás, mais coisa ficou no muro).
Bem, no que ela tem de melhor -a garimpagem do tesouro nacional-, mantém-se a marola. "Cinco Minutos", da fase "alquímica" de Jorge Ben, dá-lhe chance de deitar e rolar, entre arranjo moderno e lampejos vocais da Gal rascante de 70-71. A de Paulinho da Viola passa bem, pela perfeição da composição e pelo cavaquinho de Mauro Diniz.
A de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito é curiosidade, sem tanto brilho assim. Já em "O Que Me Importa" (gravada há pouco pelo Ira!), Marisa perde feio para a versão de Tim Maia, espantosa por todos os prismas. Marisa não fez nada pela canção, tornou-a barroca, perdeu-a.
Resumo? É reto, altivo. É teso, tenso. Artista de conhecidos rigor e exigência, Marisa merece ser cobrada não menos que na mesma medida. É cedo para que dê sinais de acumular limo, ainda que o limo seja verdinho, amarelinho. (PAS)


Disco: Memórias, Crônicas e Declarações de Amor    
Artista: Marisa Monte
Lançamento: Phonomotor/EMI
Quanto: R$ 25 (e R$ 50, a edição limitada), em média


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