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CRÍTICA
Perfeita e acomodada, flerta com o conservadorismo
DO ENVIADO AO RIO
O Brasil já está acostumado à
excelência artística de Marisa
Monte. "Memórias, Crônicas e
Declarações de Amor" cumpre à
risca, oferecendo beleza à farta e
esbanjando aprumo técnico.
É, dir-se-ia, milimétrico, e justo
aí estão escondidos alguns senões.
Em primeiro lugar, é milimétrico
demais, mais talvez do que nossos
vãos defeitos possam suportar.
Seu passeio pela beleza exala assepsia (de novo) e cálculo, em que
lembra Walter Salles.
Depois, Marisa é artista que gosta de inflar expectativas, de se
guardar para depois explodir em
cores. Ora, sendo assim "Memórias..." é decepcionante. Avança
pouquíssimos milímetros adiante
de "Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão" (94), aventura de
estúdio anterior.
Se naquele disco Marisa fixava
uma metodologia e lipoaspirava
excessos anteriores, aqui xeroca a
estratégia bem-sucedida. Surdos
virados e guitarras à parte, o novo
CD é estruturalmente xipófago do
anterior em escolhas estéticas, recortes, truques de atração.
Algum problema? Não a princípio, mas é bom assinalar que tal
acomodação em artista tão jovem
é ponto para o conservadorismo
-não há novidade nem diferença na dispensa da ousadia, no culto ao meio; é a mais antiga das
profissões preguiçosas.
"Memórias..." é cândido em vários termos. O sentimentalismo
emoldurado por macios arranjos
de corda arredonda o conceito
"romântico". Mais, a circunscrição da solidão, definida por ela,
aproxima-a do sublime (e aí a história das fotos de si tiradas por si
resulta menos egotrip mala que
investigação daquela funda modalidade de dor).
Mas Marisa o faz pelo meio. Temas amorosos como "Não Vá
Embora", "Não É Fácil" e "Tema
de Amor" são tão belos como tolos. Resultam deliciosos, e mais
ainda resulta a faixa de rádio,
"Amor I Love You", (in)voluntariamente kitsch em seu coro de
rãs, nos "póins" e no declame
bem torneado de Eça de Queiroz
por Arnaldo Antunes.
Fortificando a parceria com
Carlinhos Bown e com Arnaldo, a
autora neutraliza tanto as letras
irracionalistas daquele quanto a
poesia mais elaborada desse. Na
média, um mais um mais um dividido por três é igual a um.
Talvez por isso a melhor entre
as novas composições (junto com
"Sou Sua Sabiá", de Caetano, um
diamante "tristíssimo", como enceta a letra) seja "Gentileza", de
Marisa sozinha. É gostosa e prosaica composição, ainda que uma
moça tão rigorosa não pudesse,
nunca, permitir o erro de concordância de "só ficou no muro tristeza e tinta fresca" (só "ficaram",
não é, Marisa? Aliás, mais coisa ficou no muro).
Bem, no que ela tem de melhor
-a garimpagem do tesouro nacional-, mantém-se a marola.
"Cinco Minutos", da fase "alquímica" de Jorge Ben, dá-lhe chance
de deitar e rolar, entre arranjo
moderno e lampejos vocais da Gal
rascante de 70-71. A de Paulinho
da Viola passa bem, pela perfeição da composição e pelo cavaquinho de Mauro Diniz.
A de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito é curiosidade,
sem tanto brilho assim. Já em "O
Que Me Importa" (gravada há
pouco pelo Ira!), Marisa perde
feio para a versão de Tim Maia,
espantosa por todos os prismas.
Marisa não fez nada pela canção,
tornou-a barroca, perdeu-a.
Resumo? É reto, altivo. É teso,
tenso. Artista de conhecidos rigor
e exigência, Marisa merece ser cobrada não menos que na mesma
medida. É cedo para que dê sinais
de acumular limo, ainda que o limo seja verdinho, amarelinho.
(PAS)
Disco: Memórias, Crônicas e Declarações de Amor
Artista: Marisa Monte
Lançamento: Phonomotor/EMI
Quanto: R$ 25 (e R$ 50, a edição limitada), em média
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