São Paulo, terça-feira, 11 de junho de 2002

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FOTOGRAFIA

A outra ilha de caras

Paulo Garcez/Reprodução do livro "Arte do Encontro"
Maria Della Costa (atriz)


ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

O carioca Paulo Garcez é um fotógrafo que fala. Cite-se o nome dele entre aqueles que o conhecem e logo se ouvirá: "Graaande frasista". Diz a lenda que, na época áurea de "O Pasquim", o "príncipe de Gales de Ipanema", como o chamavam, costumava apimentar as célebres (e já apimentadas) entrevistas do tablóide com blagues desconcertantes.
Funcionava assim: os redatores e chargistas do semanário -Ziraldo, Millôr, Jaguar, Paulo Francis, Sérgio Cabral- cercavam a "vítima" da vez. Ofereciam-lhe uísque e uma porção de perguntas pontiagudas (o aperitivo).
Câmera Nikon em punho, o fotógrafo se aproximava do grupo. Procurava a posição ideal e, enquanto clicava o entrevistado zonzo, ia disparando uma torrente de comentários, que o deixavam ainda mais zonzo. Não raro, arrematava os gracejos com um inconfundível "hein?".
Das inúmeras pilhérias que lhe atribuem, a que realmente se imortalizou versa sobre a superioridade feminina: "Quando a mulher tira a roupa no quarto, já está 1 a 0 para ela".
Hoje, à beira dos 73 anos, Garcez mora sozinho em Copacabana e jura não se recordar de nada, nem dos chistes nem das senhoritas (ou senhoras) que o golearam. Conserva o bigodão de sempre, os olhos verdes, os óculos de míope. Mas a memória... "Fraca, fraca." Culpa "o adiantado da hora".
Talvez por isso, para robustecer as lembranças franzinas, é que Garcez resolveu lançar "Arte do Encontro", o primeiro livro em cinco décadas de carreira. A coletânea reúne 140 fotos -a maioria, retratos. Estão ali, em preto-e-branco, muitas das celebridades que circularam pelo Rio nos anos 60 e 70.
Há pratas da casa: Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Oscar Niemeyer. E há estrangeiros, de dentro e fora do Brasil: Rubem Braga, Nara Leão, Nelson Rodrigues, Drummond, Volpi, Fernando Sabino, Jorge Amado, Marisa Berenson, Candice Bergen.
Garcez os flagrou para "O Pasquim", mas não só. No tablóide alternativo, trabalhou como editor fotográfico entre 1970 e 1972, se a memória ("fraca, fraca") não o engana. A passagem pelo jornal, alvo constante do governo militar, custou-lhe 13 dias de prisão. "Quem tinha o nome no expediente dançava." Ou "caía gripado" -eufemismo com que o semanário explicava para os leitores o sumiço repentino deste ou daquele colaborador.
Antes e depois de "O Pasquim", Garcez participou de outras tantas publicações (o "Diário Carioca" e a revista "Vogue" são apenas dois exemplos). Fez, ainda, vários "portraits" por conta própria, como hobby, sem a pretensão de editá-los.
O sumo de tudo o que captou -"milhares de rostos, gente, gente, gente"- repousam, agora, no livro. Para extrair a nata de tamanho acervo, valeu-se de "um método difuso". "Fui olhando os negativos e separando. Simples assim." Objetos e paisagens não o seduzem. "Motocicleta, carro, sol nascendo, natureza-morta... Não, meu negócio são as pessoas, os tais grãos de areia no universo."
Pessoas porque lhe parecem, sempre, belas. "Taí. Vamos reformular: meu negócio, de fato, é a estética. Questão de gosto."
Se colecionou caras, acumulou também lendas. A de que inventa frases definitivas ("invento mesmo?") e as de que:
* Nasceu em berço aristocrático. ("Mentira. Não há quatrocentões no Rio.")
* Torce pelo América. ("Verdade. A vantagem é que não preciso me preocupar com futebol.")
* Detesta praia e piscina. ("Verdade. Praia, se não juntasse areia, podia ter graça. E piscina... Ótimo lugar para se beber em volta.")
* Dá pouquíssimas entrevistas. ("Verdade. Falo menos que o Rubem Fonseca.")
* Padece de anglofilia. ("Mentira. Se bem que a Inglaterra... Existe país melhor?")
* Foi boêmio e mulherengo. ("Imprima-se a lenda!")
Pai de Rafaela, fruto de um rápido casamento, Garcez fotografou "quase que exclusivamente" os amigos. "Conhecia todo mundo que pus no livro. Já eram personalidades, sim, mas não os tratava como tal."
Daí a notável e comovente simplicidade dos retratos. Daí o registro desenvolto de cenas íntimas: o artista plástico Hélio Oiticica fumando maconha; a atriz Leila Diniz saindo do banho com toalha na cabeça; o poeta João Cabral de Melo Neto ("o homem que nunca ri") às gargalhadas; Tom Jobim cortando os cabelos de Vinicius.
"Saudade? Muita. Mais saudade do que dor -embora não haja saudade sem dor."
Falhas, o livro amarga pelo menos uma: faltam datas. Garcez não indica, em nenhum momento, quando produziu as fotos. "Não anotei na época e, agora, me esqueci. Sabe como é: a memória..." Fraca, fraca.


ARTE DO ENCONTRO. Fotos: Paulo Garcez. Textos: Millôr Fernandes, Sérgio Augusto e Ruy Castro. Editora: Bem-Te-Vi. R$ 105.



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