São Paulo, quinta-feira, 11 de junho de 2009

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Crítica/teatro/"Vestido de Noiva"

Villela potencializa Nelson Rodrigues

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Uma peça revela sua eternidade cada vez que enseja montagens que a iluminam de novos ângulos. A encenação de "Vestido de Noiva" de Gabriel Villela potencializa aspectos do célebre texto de Nelson Rodrigues (1912-1980) que permaneciam latentes. De fato, o encenador resgata a audácia e o rigor de trabalhos que o consagraram e realiza uma leitura inventiva permanecendo absolutamente fiel à dramaturgia original.
A operação mais evidente de distanciamento do cânone associado à peça diz respeito à dissolução espacial dos três planos que a narrativa dramática de Nelson pressupõe -o da realidade do atropelamento da heroína, o da alucinação que sofre no seu coma hospitalar e o da sua própria memória, que permite a reconstituição dos fatos que antecederam o acidente.
Na primeira e histórica montagem, em 1943, a cenografia impôs uma separação estrita entre esses planos. Na atual, eles aparecem sintetizados em uma matéria cênica instável, modulada ora na sugestão de um jazigo para essa morta, anunciada desde a primeira cena, ora projetando o altar festivo de suas núpcias, evocadas no título da peça.

Antony surpreende
Nesta "festa nupcial sinistra", como a define Villela, as interpretações das atrizes e dos atores não poderiam coadunar-se em um registro naturalista, como se estivessem bem demarcadas em cada um dos três planos previstos. As falas curtas e inconfundíveis de Nelson Rodrigues estão lá, impecavelmente respeitadas.
Mas seus figurinos, e a forma como vão pronunciando suas linhas, embaralham-se como o próprio espaço cênico num registro híbrido em que os gêneros -masculino e feminino- e as instâncias de sua enunciação -alucinação e memória, realidade e fantasia- aparecem inexoravelmente fundidos.
É interessante perceber que as rubricas de Nelson autorizam essa leitura pela via do pastiche. Talvez o teatro de 66 anos atrás não aceitasse uma fusão tão radical. Mas, graças a ela, aspectos geniais do texto, como os momentos em que o dramaturgo brinca com a colagem de cenas alheias, citando a ópera "Traviata" e personagens de "...E o Vento Levou", ganham relevo sem precedentes.
A licenciosidade é também produtiva no uso que o espetáculo faz da música. Nelson pede a combinação das marchas fúnebre e nupcial, mas se vai muito além com a trilha de Daniel Maia. Boleros e tangos e pontuações oportunas de frases clássicas do cancioneiro da MPB permitem afastar os personagens do ambiente melodramático que sempre os restringe, levados a sério, a uma histeria patética. Mais soltos, e menos atormentados, até eventualmente cantando, eles arejam a alma do autor e revelam melhor sua face irônica e corrosiva.
O melhor exemplo é o de Marcello Antony, surpreendendo não só por cantar bem, mas pela interpretação mais próxima da pantomima do que da psicologia. Leandra Leal brilha com seu instinto de irreverência, à vontade nessa carnavalização da morte. Vera Zimmermann oscila entre a impostação e a leveza, e Luciana Carnieli é o grande destaque como Madame Clessi.
O cenário de J.C.Serroni é preciso no que permite a mobilidade espacial e a indeterminação de planos, mas exagerado em alguns detalhes figurativos que contrariam o espírito libertário da encenação. Esse "Vestido de Noiva" desvela um Nelson nosso contemporâneo.


VESTIDO DE NOIVA

Quando: hoje e amanhã, às 21h30; sáb., às 21h; dom., às 19h; até 2/8.
Onde: Teatro Vivo (av. Chucri Zaidan, 860, Morumbi, tel.: 0/xx/11/ 7420-1520; R$ 30 a R$ 70)
Classificação: 14 anos




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