São Paulo, Sexta-feira, 11 de Junho de 1999
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Domingos faz obra para rever e gostar cada vez mais

LÚCIA NAGIB
da Equipe de Articulistas

Um dos filmes intelectualmente mais trabalhados do cinema brasileiro dos anos 90 vem sendo descrito como "espontâneo", "improvisado", "natural". Talvez aí esteja a maior qualidade de "Amores": a modéstia com que esconde seus recursos mais sofisticados.
Mais do que a filmagem de uma peça de teatro encenada com sucesso por um ano, no Rio "Amores" é um filme de escritor, segundo a receita do diretor Domingos Oliveira: "Para escrever um bom roteiro é preciso ser um bom escritor". E Oliveira não apenas assina o roteiro (junto com Priscilla Rozenbaum), como interpreta o personagem de um escritor, Vieira escritor de TV, mas não importa.
O fato é que os diálogos, que soam tão espontâneos, são na verdade altamente literários. Não bastasse os personagens estarem lendo e citando Dostoiévski a respeito de tudo, ouvem-se frases como "o menino prognatou o queixo" ou "nós dois berrando baixinho" e outras coisas que se podem perfeitamente ler, mas que ninguém fala. A (falsa) naturalidade se deve ao truque da rapidez da fala aliás, já utilizado por Truffaut, um dos ídolos de Oliveira. Embora elaborados, os diálogos jorram com a urgência dos sentimentos.
Cinema verborrágico de escritor, sim, mas antes de tudo cinema de autor. Domingos Oliveira contamina tudo. Não apenas por se colocar em cena com sua família: a escritora e atriz Maria Mariana, sua filha na vida real e no filme, e sua esposa Priscilla Rozenbaum que, no filme, é a melhor amiga de Vieira. Mas também por fazer com que todos interpretem como ele mesmo, assim como Woody Allen (que faz um cinema semelhante) produz com seus atores uma série de clones de si próprio.
Todos os atores de Oliveira, como ele mesmo, têm pressa de falar e agir. O pai ciumento (Vieira) desabafa em atropelo com a melhor amiga as peripécias da filha com o novo namorado. Pouco depois, essa amiga transa sofregamente com o marido, em desespero tardio para engravidar. Então bate à porta sua irmã, ansiosa para contar que se apaixonou. A seguir, vemos esta irmã numa conversa convulsa com sua nova paixão e de repente a revelação: ele é HIV positivo.
Pressa e surpresa são também os atributos essenciais de uma câmera que parece correr aturdida atrás da ação. Desequilíbrio, trepidação, hesitação, a câmera chega até a ficar de ponta-cabeça. Uma volta à câmera inquieta e jornalística do cinema novo e da nouvelle vague?
Trata-se, de todo modo, de uma câmera que "escreve" no presente, montando uma crônica do cotidiano da sociedade média brasileira, numa narrativa frequentemente auto-reflexiva. De tal forma que a decisão sobre o final happy end ou não é discutida pelos personagens.
Também o humor de longe, o mais inspirado do cinema brasileiro contemporâneo é integrado como recurso auto-reflexivo.
Escritor de teatro e televisão, ator e, só ocasionalmente, diretor de cinema, Domingos Oliveira, celebrizado com "Todas as Mulheres do Mundo" (1966), nos presenteia agora com este filme verdadeiramente barato, mas falsamente simples. Uma obra de maturidade, para consumo imediato, mas que se revela ao poucos, em suas inteligentíssimas entrelinhas. Um filme para rever e gostar cada vez mais.


Avaliação:     

Filme: Amores Direção: Domingos Oliveira Com: Clarisse Niskier, Domingos Oliveira, Maria Mariana, Priscilla Rozenbaum Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 3

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