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Domingos faz obra para rever e gostar cada vez mais
LÚCIA NAGIB
da Equipe de Articulistas
Um dos filmes intelectualmente
mais trabalhados do cinema brasileiro dos anos 90 vem sendo descrito como "espontâneo", "improvisado", "natural". Talvez aí esteja
a maior qualidade de "Amores": a
modéstia com que esconde seus
recursos mais sofisticados.
Mais do que a filmagem de uma
peça de teatro encenada com sucesso por um ano, no Rio "Amores" é um filme de escritor, segundo a receita do diretor Domingos
Oliveira: "Para escrever um bom
roteiro é preciso ser um bom escritor". E Oliveira não apenas assina o
roteiro (junto com Priscilla Rozenbaum), como interpreta o personagem de um escritor, Vieira escritor de TV, mas não importa.
O fato é que os diálogos, que
soam tão espontâneos, são na verdade altamente literários. Não bastasse os personagens estarem lendo e citando Dostoiévski a respeito
de tudo, ouvem-se frases como "o
menino prognatou o queixo" ou
"nós dois berrando baixinho" e
outras coisas que se podem perfeitamente ler, mas que ninguém fala.
A (falsa) naturalidade se deve ao
truque da rapidez da fala aliás, já
utilizado por Truffaut, um dos ídolos de Oliveira. Embora elaborados, os diálogos jorram com a urgência dos sentimentos.
Cinema verborrágico de escritor,
sim, mas antes de tudo cinema de
autor. Domingos Oliveira contamina tudo. Não apenas por se colocar em cena com sua família: a
escritora e atriz Maria Mariana,
sua filha na vida real e no filme, e
sua esposa Priscilla Rozenbaum
que, no filme, é a melhor amiga de
Vieira. Mas também por fazer com
que todos interpretem como ele
mesmo, assim como Woody Allen
(que faz um cinema semelhante)
produz com seus atores uma série
de clones de si próprio.
Todos os atores de Oliveira, como ele mesmo, têm pressa de falar
e agir. O pai ciumento (Vieira) desabafa em atropelo com a melhor
amiga as peripécias da filha com o
novo namorado. Pouco depois, essa amiga transa sofregamente com
o marido, em desespero tardio para engravidar. Então bate à porta
sua irmã, ansiosa para contar que
se apaixonou. A seguir, vemos esta
irmã numa conversa convulsa com
sua nova paixão e de repente a revelação: ele é HIV positivo.
Pressa e surpresa são também os
atributos essenciais de uma câmera que parece correr aturdida atrás
da ação. Desequilíbrio, trepidação,
hesitação, a câmera chega até a ficar de ponta-cabeça. Uma volta à
câmera inquieta e jornalística do
cinema novo e da nouvelle vague?
Trata-se, de todo modo, de uma
câmera que "escreve" no presente,
montando uma crônica do cotidiano da sociedade média brasileira,
numa narrativa frequentemente
auto-reflexiva. De tal forma que a
decisão sobre o final happy end ou
não é discutida pelos personagens.
Também o humor de longe, o
mais inspirado do cinema brasileiro contemporâneo é integrado como recurso auto-reflexivo.
Escritor de teatro e televisão, ator
e, só ocasionalmente, diretor de cinema, Domingos Oliveira, celebrizado com "Todas as Mulheres do
Mundo" (1966), nos presenteia
agora com este filme verdadeiramente barato, mas falsamente simples. Uma obra de maturidade, para consumo imediato, mas que se
revela ao poucos, em suas inteligentíssimas entrelinhas. Um filme
para rever e gostar cada vez mais.
Avaliação:
Filme: Amores
Direção: Domingos Oliveira
Com: Clarisse Niskier, Domingos Oliveira,
Maria Mariana, Priscilla Rozenbaum
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco 3
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