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MÚSICA CLÁSSICA CRÍTICA
Quarteto mistura inteligência e paixão em Fauré
ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
Paixão e inteligência, na música,
são uma coisa só. Mas a inteligência da paixão é maior do que a paixão da inteligência na música de
Gabriel Fauré (1845-1924), interpretada com muita paixão e inteligência pelo Quarteto Beethoven de
Roma, terça-feira passada no teatro Cultura Artística.
"Por que não se toca mais Fauré?" -deve ser a pergunta que estava na cabeça de todos, depois do
concerto. Uma resposta é que Fauré não se deixa tocar: não é qualquer pianista que pode aspirar à
vivacidade, nem à maturidade,
nem às ironias musicais de Carlo
Bruno. Virtuose sem ostentação,
músico inteiramente natural e generoso, Bruno é uma inspiração
para quem ouve e também para
seus companheiros de quarteto.
Fauré, que era agnóstico, foi um
grande compositor religioso. Agnóstico também da modernidade,
ele escreve uma música que chega
a ter a sofisticação harmônica de
Debussy, enquanto guarda as elaborações franco-wagnerianas
mais típicas do fim de século.
No Quarteto nº 1, da década de
1870, ainda está mais próximo de
seu contemporâneo Saint-Saens
do que de seu sucessor Ravel; mas
já inventou um tempo próprio para si, onde se cruzam correntes distintas, nos acentos únicos de uma
personalidade.
O Quarteto Beethoven é um intérprete ideal desse tardo-romantismo quase-modernista de Fauré.
O som cheio, a articulação sem
maneirismos, o fraseado à antiga:
aquilo que foi a grande virtude do
antigo conjunto I Musici (onde tocavam o violinista Felix Ayo e o
violista Alfonso Ghedin), tornou-se depois uma falência, quando
confrontada com as novas virtudes
da interpretação "autêntica"; e retorna, agora, traduzida para este
repertório, onde faz mais sentido e
enche os ouvidos de novo como
uma revelação.
A grande frase em uníssono das
cordas, no terceiro movimento,
serviria de emblema do conjunto:
corajosa, fogosa, ao mesmo tempo
sabendo onde quer chegar e chegando onde nem sabe.
"Mas é um Beethoven menor",
comentava alguém no intervalo,
sobre o Quarteto WoO 36/3. Juridicamente, sem dúvida: Beethoven
tinha só quinze anos quando escreveu este quarteto, em 1785.
Comparado ao Beethoven da
maioridade, é um Beethoven adolescente; vale dizer, mozartiano.
Mais precisamente, um Mozart
beethoveniano, o que dá a medida
do gênio do compositor mais jovem, capaz de pôr um adjetivo em
Mozart. Os italianos estavam só
aquecendo; mas com muita simpatia, muita elegância melódica e
humana, e uma franqueza de
quem não é mais capaz de tocar
uma nota sequer sem a grandeza
de anos e anos de música.
Bohulav Martinu (1890-1959) é
um daqueles compositores um
pouco à margem do cânone, que
sempre se escuta com curiosidade
e vontade de gostar. Sempre se sai
um pouco frustrado; mas não demais. Seu Quarteto nº 1 foi escrito
em 1942, nos Estados Unidos, onde
o compositor se exilara, fugindo
do nazismo.
Combina traços de barroquismo
com acentos e métrica jazzísticos,
num contexto de outras densidades, mais européias.
Nos melhores momentos, o
Quarteto de Martinu é digno de
comparação com Prokofiev. Em
outros, soa como um sonho ambicioso e confuso de Dave Brubeck.
Ouvido sozinho, teria menos efeito. Mas no meio deste programa, e
tocado com tanta eloquência, foi
uma audácia de escolha e uma escolha interessante.
Como é tantas vezes o caso, o bis
foi outro ponto alto do concerto: o
Andante do Quarteto de Schumann (1810-1856), com um lindo
solo do violoncelista Mihai Dancila.
Estranho ano, até aqui. Muitos
concertos, todos de alto nível, mas
nenhum ultrapassando os limites
da excelência. Vida de ouvinte é
assim mesmo: é preciso ir a dez
concertos, ou vinte, para escutar
um que deixe uma marca no calendário. Mas está muito longe de ser
um sacrifício escutar um conjunto
como o Quarteto Beethoven de
Roma; e o próximo concerto,
quem sabe, não faz a diferença.
Avaliação:
E-mail: nestro@uol.com.br
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