São Paulo, Sexta-feira, 11 de Junho de 1999
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MÚSICA CLÁSSICA CRÍTICA
Quarteto mistura inteligência e paixão em Fauré

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

Paixão e inteligência, na música, são uma coisa só. Mas a inteligência da paixão é maior do que a paixão da inteligência na música de Gabriel Fauré (1845-1924), interpretada com muita paixão e inteligência pelo Quarteto Beethoven de Roma, terça-feira passada no teatro Cultura Artística.
"Por que não se toca mais Fauré?" -deve ser a pergunta que estava na cabeça de todos, depois do concerto. Uma resposta é que Fauré não se deixa tocar: não é qualquer pianista que pode aspirar à vivacidade, nem à maturidade, nem às ironias musicais de Carlo Bruno. Virtuose sem ostentação, músico inteiramente natural e generoso, Bruno é uma inspiração para quem ouve e também para seus companheiros de quarteto.
Fauré, que era agnóstico, foi um grande compositor religioso. Agnóstico também da modernidade, ele escreve uma música que chega a ter a sofisticação harmônica de Debussy, enquanto guarda as elaborações franco-wagnerianas mais típicas do fim de século.
No Quarteto nº 1, da década de 1870, ainda está mais próximo de seu contemporâneo Saint-Saens do que de seu sucessor Ravel; mas já inventou um tempo próprio para si, onde se cruzam correntes distintas, nos acentos únicos de uma personalidade.
O Quarteto Beethoven é um intérprete ideal desse tardo-romantismo quase-modernista de Fauré. O som cheio, a articulação sem maneirismos, o fraseado à antiga: aquilo que foi a grande virtude do antigo conjunto I Musici (onde tocavam o violinista Felix Ayo e o violista Alfonso Ghedin), tornou-se depois uma falência, quando confrontada com as novas virtudes da interpretação "autêntica"; e retorna, agora, traduzida para este repertório, onde faz mais sentido e enche os ouvidos de novo como uma revelação.
A grande frase em uníssono das cordas, no terceiro movimento, serviria de emblema do conjunto: corajosa, fogosa, ao mesmo tempo sabendo onde quer chegar e chegando onde nem sabe.
"Mas é um Beethoven menor", comentava alguém no intervalo, sobre o Quarteto WoO 36/3. Juridicamente, sem dúvida: Beethoven tinha só quinze anos quando escreveu este quarteto, em 1785. Comparado ao Beethoven da maioridade, é um Beethoven adolescente; vale dizer, mozartiano. Mais precisamente, um Mozart beethoveniano, o que dá a medida do gênio do compositor mais jovem, capaz de pôr um adjetivo em Mozart. Os italianos estavam só aquecendo; mas com muita simpatia, muita elegância melódica e humana, e uma franqueza de quem não é mais capaz de tocar uma nota sequer sem a grandeza de anos e anos de música.
Bohulav Martinu (1890-1959) é um daqueles compositores um pouco à margem do cânone, que sempre se escuta com curiosidade e vontade de gostar. Sempre se sai um pouco frustrado; mas não demais. Seu Quarteto nº 1 foi escrito em 1942, nos Estados Unidos, onde o compositor se exilara, fugindo do nazismo.
Combina traços de barroquismo com acentos e métrica jazzísticos, num contexto de outras densidades, mais européias.
Nos melhores momentos, o Quarteto de Martinu é digno de comparação com Prokofiev. Em outros, soa como um sonho ambicioso e confuso de Dave Brubeck. Ouvido sozinho, teria menos efeito. Mas no meio deste programa, e tocado com tanta eloquência, foi uma audácia de escolha e uma escolha interessante.
Como é tantas vezes o caso, o bis foi outro ponto alto do concerto: o Andante do Quarteto de Schumann (1810-1856), com um lindo solo do violoncelista Mihai Dancila.
Estranho ano, até aqui. Muitos concertos, todos de alto nível, mas nenhum ultrapassando os limites da excelência. Vida de ouvinte é assim mesmo: é preciso ir a dez concertos, ou vinte, para escutar um que deixe uma marca no calendário. Mas está muito longe de ser um sacrifício escutar um conjunto como o Quarteto Beethoven de Roma; e o próximo concerto, quem sabe, não faz a diferença.


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