São Paulo, Sexta-feira, 11 de Junho de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
A melhor coisa da vida e do mundo

Foi em Belo Horizonte, semana passada, numa palestra que fiz a convite de Afonso Borges, que mantém um programa chamado ""Sempre um Papo", que já levou gente mais importante para lá, inclusive o Saramago. Independentemente do convidado, o auditório fica cheio de gente interessada, jovens e velhos. Mais jovens do que velhos -estes estão cansados da vida e não querem papo.
Tive duas surpresas. A primeira, ao final da conversa, quando um homem de seus 60 anos se aproximou, tirou de sua pasta uma crônica que escrevi na Folhaem 1995. Era sobre Mila -a mais que amada, a quem dediquei um livro escrito após 23 anos de jejum literário.
Nem perguntei por que guardara aquele recorte. Olhei-o sem saber o que ele pretendia ao me mostrar aquilo. Olhava-me esquisito, em silêncio. Simplesmente me mostrava aquela crônica, tirasse eu as conclusões ou nada tirasse daquele gesto.
Ficamos algum tempo assim, olhando um para o outro. Como havia mais pessoas em volta, voltou a guardar a crônica numa pasta, olhou-me uma vez mais e foi embora. Tive a impressão de que desejara apenas me dar um recado -ou uma resposta: ele também tivera a sua Mila e compreendera tudo. Sendo assim, eu também o compreendi.
A outra surpresa foi diferente. Enquanto a primeira foi secreta, entre dois homens feridos no amor por uma amiga que nos deixara, a segunda foi pública e divertida. A moça lá do fundo quis saber as cinco coisas que mais me davam prazer. Fez antes um preâmbulo, classificando-me de rabugento, pessimista etc. Apesar disso, declarou-me em forma -eu estava resfriado e minha voz engrossara. Pois ela elogiou minha voz, daí não entendia meu ressentimento contra a vida e contra o mundo.
Perguntei se desejava ouvir uma resposta sincera. E, como era isso mesmo o que esperava de mim, respondi pela ordem. Disse que a primeiríssima coisa que me dava prazer era aquilo mesmo que todos -inclusive ela- estavam pensando.
A segunda, bem, a segunda ficava a léguas dessa primeira, tão distante que nem podia ser classificada como um prazer. E estava de tal modo amontoada com outras, que seria difícil e inútil citá-las por ordem de importância. Nesse pacote, incluiria mais de quatro coisas, mas sem predominância de uma sobre as demais.
Ler, ouvir música, fumar um bom charuto no final da noite, viajar para os mesmos lugares de que gosto, procurar os amigos quando deles sinto falta -enfim, coisas banais que, umas pelas outras, dão prazer a todo mundo.
O importante era, como procurei deixar bem claro, a primeira. O auditório, em sendo respeitável, impediu-me que eu contasse uma história que muito me impressionou e que tem tudo a ver com o assunto.
Nos primeiros anos do curso de jornalismo da PUC aqui no Rio, formou-se um grupo de trabalho para fazer uma pesquisa de campo que fosse inédita, jamais feita por nenhum pesquisador acadêmico ou profissional. Reuniram-se cinco moças, bem nascidas, daquilo que se podia chamar de alta burguesia dos anos 50, papais ricos e famosos, mães que ganhavam medalhas por serem boas mães etc.
As moças recusaram qualquer investigação em torno dos mesmos personagens de sempre. Decidiram partir em caravana até uma cidadezinha perdida no mapa do Brasil, onde nunca pisara um jornalista, um funcionário da FGV ou dos institutos de opinião pública.
Foram dar com os costados num lugar cujo nome não aparecia em mapa algum e que não era classificado em nenhum Estado, município, vila ou aldeia. Era apenas um conjunto de casas desalinhadas à beira de um caminho que não levava a lugar algum.
Nesta solidão física e quase metafísica, as moças encontraram um velho, muito velho mesmo, cabelos brancos, barba branquíssima, sentado à beira da casa mais escondida e anônima do lugar mais escondido e anônimo do universo.
Uma das moças fez um breve discurso se apresentando e apresentando o grupo, falou no trabalho que estavam fazendo, queriam consultá-lo como um oráculo, um ser humano que nunca declarara nada a ninguém e, por isso mesmo, deveria guardar o segredo da verdadeira sabedoria.
O velho olhou as moças sem surpresa. E, como não disse nada, elas se julgaram entendidas. Fizeram então a pergunta fundamental que as trouxera ali: ""Qual seria a melhor coisa da vida?". Com a experiência dos anos, com a solidão das distâncias, ele deveria armazenar uma sabedoria transcendental, pedra angular de todas as demais sabedorias.
Custou a responder. Não porque tivesse alguma dúvida sobre a resposta, mas porque tinha preguiça de pensar e muito mais de falar. Após um silêncio que as moças consideraram científico, canetas em riste para captar a verdade que ali brotaria, o velho finalmente respondeu: ""Moça, a melhor coisa da vida é mesmo fornicar".


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