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AVENTURA
Autor nova-iorquino navega em barco improvisado pelo rio Mississippi, nos EUA, para divulgar seu novo livro
Escritor John Wray dá asas a seu Mark Twain interior
DAVID CARR
DO "NEW YORK TIMES"
A primeira noite no rio foi maldormida, um pouco assustadora
até. Depois de atracar em Helena,
Arkansas, a balsa feita em casa ficou presa na esteira dos enormes
rebocadores que a cercavam no
rio Mississippi. A embarcação foi
seguindo na escuridão, e fortes
raios de luz dos rebocadores começaram a atravessá-la -os capitães queriam enxergar que tipo
de geringonça estava à frente. A
tripulação improvisada dormiu
em turnos apavorados.
John Wray, 33, um escritor do
Brooklyn, Nova York, que teve a
idéia de conduzir um passeio de
balsa para divulgar seu novo romance, "Canaan's Tongue" (A
Língua de Canaã, ed. Alfred A.
Knopf), se perguntou se a aventura -para atrair a mídia e realizar
um sonho de infância- não poderia virar tão gótica quanto o livro que queria promover.
O romance é uma visão fictícia
de John Murel, ladrão de cavalos e
pregador itinerante que existiu na
vida real e que arquitetou um plano de atrair escravos para a fuga
para revendê-los. O livro é farto
em cenas de sangue e violência,
boa parte das quais ambientada
no rio, entre o Louisiana e o Mississippi, justamente o trecho que
Wray desceu, acompanhado de
um repórter e um fotógrafo, na
minúscula balsa, que, com eles, tinha um total de cinco tripulantes.
A balsa partiu no dia 21 de junho. Depois de discutir os custos
com seu editor, cético, Wray o
convenceu a aderir à idéia, e a
Knopf financiou o custo, US$
5.200 (R$ 12.400). Com exceção
de uma parada numa livraria em
Oxford, Mississippi, que foi espetacular, as sessões públicas de leitura feitas têm sido um fiasco. Sob
o calor fétido do verão, ninguém
compareceu às sessões, ou a livraria local recusou o convite, ou,
ainda, as coisas não funcionaram.
Independentemente de ele acabar vendendo mais livros ou não,
as histórias sobre a viagem vão
praticamente narrar-se sozinhas.
"Pensei em vários esquemas
malucos para chamar a atenção
das pessoas para o livro, e esse me
pareceu o melhor deles", contou
Wray. Ele é um romancista e poeta sério. Seu primeiro livro, "The
Right Hand of Sleep", foi muito
aclamado. Mas ele parecia bizarro
ao extremo usando um chapéu de
palha da coleção impressionantemente feia de chapéus da jangada.
"A viagem vem sendo inacreditável e está valendo a pena", contou. "Viemos para cá porque não
basta escrever um bom livro e obter resenhas positivas. Quero passar o resto de minha vida escrevendo ficção e, para isso, é preciso
vender livros. Achei que isto poderia ajudar", acrescentou.
Redemoinho
Nesse momento a balsa entrou
num redemoinho e iniciou uma
pirueta que se prolongou por alguns minutos. Quando ela terminou, tornara-se difícil discernir o
que era rio abaixo e rio acima.
Wray esperava por algo desse tipo quando construiu a jangada
com madeira que comprou numa
loja e barris que encontrou em
Nova Jersey. Quando souberam
de seu plano, os sujeitos que lhe
venderam os barris lhe deram um
"desconto maluquice" de 15%
-está escrito no recibo.
De modo geral, disse Wray, o
Sul desconfia do Mississippi e dá
as costas ao rio, que considera imprevisível. Os locais que chegam a
ver a balsa com sua tripulação
ianque parecem se encantar.
Kenny Leake, que tinha parado
no embarcadouro em St. Joseph,
Louisiana, riu sozinho enquanto
tirava fotos da balsa. "Nós, sulistas, somos bonzinhos", explicou.
"Não vamos falar mal da balsa."
Não seria difícil fazê-lo. Ela se
ergue sobre barris e traz equipamentos amarrados a suas laterais.
Foi concebida por Corin Hewitt,
escultor por profissão, e, com
suas asas dobráveis de plástico
ondulado, não poderia deixar de
chamar a atenção.
"Manipulador"
Nicolas Williams, amigo John
Wray, é um marinheiro mercante
que comanda uma embarcação
que parece feita de materiais encontrados numa lata de lixo. Apesar disso, adota trejeitos profissionais ao rádio quando fala com os
rebocadores no rio para avisá-los
que vai sair de seu caminho. É
uma figura marcante que se torna
necessária nessa aventura de realismo mágico flutuante. Williams
-que, quando está trabalhando,
costuma ser tripulante em iates de
proprietários ricos-, se divertia
atormentando seu colega na balsa
enquanto observava o rio.
"John é muito manipulador",
disse ele, olhando diretamente
para Wray. "Do jeito que ele me
apresentou sua proposta, não tive
muita opção senão aceitar. E agora estou aqui, e talvez esta seja a
coisa mais espantosa que já fiz."
Lá isso deve ser verdade. Numa
praia 16 quilômetros antes de
Natchez, John Wray preparou um
macarrão temperado com areia.
Com a chegada da noite, quando
o pôr-do-sol foi dando lugar à
noite estrelada, a praia ficou repleta dos esqueletos de fogos de
artifício estourados com a passagem de cada rebocador. Uma garrafa vazia de Jim Beam dividia espaço com roupas manchadas de
lama que secavam no chão.
Há poucas coisas mais inúteis
quando se está num rio do que
um romancista (se bem que repórter é outra alternativa que vem
à mente), mas Wray, que costuma
escalar montanhas por diversão,
sabe curtir uma aventura. "Minha
vida normal é totalmente estressada, então essa viagem vem sendo pura alegria", disse. "Tem tudo
a ver com a minha fantasia de
construir um barco e subir nele."
Ambicioso e barroco
Wray levou cinco anos para escrever "Canaan's Tongue". O livro tem sua dose devida de elementos improváveis; é uma história ambiciosa e barroca, repleta de
linguagem bela e elaborada, ilustrações místicas e esquemas implacáveis. É como se Mark Twain
-que, por sinal, conheceu John
Murel no rio- tivesse escrito um
episódio de "Deadwood" ambientado no Mississippi.
Um dos muitos narradores do
livro, Virgil é um profeta maltrapilho e caolho que é encontrado
por um pregador anão chamado
Redeemer (Redentor) e que adora
e teme seu líder, ao mesmo tempo
em que trama seu assassinato.
Quando a balsa chegou a Natchez, os tripulantes foram a hotéis
para lavar a infinita lama do rio de
seus corpos. Ninguém compareceu à sessão de leitura programada para o dia seguinte na cidade.
Wray autografou alguns livros e
bateu papo com seus compradores. Não importa. Há o rio, essa
balsa e, é claro, essa história.
Haverá mais alguns dias no barco jogando pôquer, pescando bagres e arrumando a embarcação.
Wray espera fazer uma sessão de
leitura em Nova Orleans.
Naquela noite em Natchez, porém, o rio caiu vários pés e deixou
a balsa encalhada. Pela manhã, todos afundaram os pés na lama para içar a embarcação- para que a
aventura pudesse continuar.
Tradução de Clara Allain
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