São Paulo, segunda-feira, 11 de julho de 2005

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AVENTURA

Autor nova-iorquino navega em barco improvisado pelo rio Mississippi, nos EUA, para divulgar seu novo livro

Escritor John Wray dá asas a seu Mark Twain interior

DAVID CARR
DO "NEW YORK TIMES"

A primeira noite no rio foi maldormida, um pouco assustadora até. Depois de atracar em Helena, Arkansas, a balsa feita em casa ficou presa na esteira dos enormes rebocadores que a cercavam no rio Mississippi. A embarcação foi seguindo na escuridão, e fortes raios de luz dos rebocadores começaram a atravessá-la -os capitães queriam enxergar que tipo de geringonça estava à frente. A tripulação improvisada dormiu em turnos apavorados.
John Wray, 33, um escritor do Brooklyn, Nova York, que teve a idéia de conduzir um passeio de balsa para divulgar seu novo romance, "Canaan's Tongue" (A Língua de Canaã, ed. Alfred A. Knopf), se perguntou se a aventura -para atrair a mídia e realizar um sonho de infância- não poderia virar tão gótica quanto o livro que queria promover.
O romance é uma visão fictícia de John Murel, ladrão de cavalos e pregador itinerante que existiu na vida real e que arquitetou um plano de atrair escravos para a fuga para revendê-los. O livro é farto em cenas de sangue e violência, boa parte das quais ambientada no rio, entre o Louisiana e o Mississippi, justamente o trecho que Wray desceu, acompanhado de um repórter e um fotógrafo, na minúscula balsa, que, com eles, tinha um total de cinco tripulantes.
A balsa partiu no dia 21 de junho. Depois de discutir os custos com seu editor, cético, Wray o convenceu a aderir à idéia, e a Knopf financiou o custo, US$ 5.200 (R$ 12.400). Com exceção de uma parada numa livraria em Oxford, Mississippi, que foi espetacular, as sessões públicas de leitura feitas têm sido um fiasco. Sob o calor fétido do verão, ninguém compareceu às sessões, ou a livraria local recusou o convite, ou, ainda, as coisas não funcionaram.
Independentemente de ele acabar vendendo mais livros ou não, as histórias sobre a viagem vão praticamente narrar-se sozinhas.
"Pensei em vários esquemas malucos para chamar a atenção das pessoas para o livro, e esse me pareceu o melhor deles", contou Wray. Ele é um romancista e poeta sério. Seu primeiro livro, "The Right Hand of Sleep", foi muito aclamado. Mas ele parecia bizarro ao extremo usando um chapéu de palha da coleção impressionantemente feia de chapéus da jangada.
"A viagem vem sendo inacreditável e está valendo a pena", contou. "Viemos para cá porque não basta escrever um bom livro e obter resenhas positivas. Quero passar o resto de minha vida escrevendo ficção e, para isso, é preciso vender livros. Achei que isto poderia ajudar", acrescentou.

Redemoinho
Nesse momento a balsa entrou num redemoinho e iniciou uma pirueta que se prolongou por alguns minutos. Quando ela terminou, tornara-se difícil discernir o que era rio abaixo e rio acima.
Wray esperava por algo desse tipo quando construiu a jangada com madeira que comprou numa loja e barris que encontrou em Nova Jersey. Quando souberam de seu plano, os sujeitos que lhe venderam os barris lhe deram um "desconto maluquice" de 15% -está escrito no recibo.
De modo geral, disse Wray, o Sul desconfia do Mississippi e dá as costas ao rio, que considera imprevisível. Os locais que chegam a ver a balsa com sua tripulação ianque parecem se encantar. Kenny Leake, que tinha parado no embarcadouro em St. Joseph, Louisiana, riu sozinho enquanto tirava fotos da balsa. "Nós, sulistas, somos bonzinhos", explicou. "Não vamos falar mal da balsa."
Não seria difícil fazê-lo. Ela se ergue sobre barris e traz equipamentos amarrados a suas laterais. Foi concebida por Corin Hewitt, escultor por profissão, e, com suas asas dobráveis de plástico ondulado, não poderia deixar de chamar a atenção.

"Manipulador"
Nicolas Williams, amigo John Wray, é um marinheiro mercante que comanda uma embarcação que parece feita de materiais encontrados numa lata de lixo. Apesar disso, adota trejeitos profissionais ao rádio quando fala com os rebocadores no rio para avisá-los que vai sair de seu caminho. É uma figura marcante que se torna necessária nessa aventura de realismo mágico flutuante. Williams -que, quando está trabalhando, costuma ser tripulante em iates de proprietários ricos-, se divertia atormentando seu colega na balsa enquanto observava o rio.
"John é muito manipulador", disse ele, olhando diretamente para Wray. "Do jeito que ele me apresentou sua proposta, não tive muita opção senão aceitar. E agora estou aqui, e talvez esta seja a coisa mais espantosa que já fiz."
Lá isso deve ser verdade. Numa praia 16 quilômetros antes de Natchez, John Wray preparou um macarrão temperado com areia. Com a chegada da noite, quando o pôr-do-sol foi dando lugar à noite estrelada, a praia ficou repleta dos esqueletos de fogos de artifício estourados com a passagem de cada rebocador. Uma garrafa vazia de Jim Beam dividia espaço com roupas manchadas de lama que secavam no chão.
Há poucas coisas mais inúteis quando se está num rio do que um romancista (se bem que repórter é outra alternativa que vem à mente), mas Wray, que costuma escalar montanhas por diversão, sabe curtir uma aventura. "Minha vida normal é totalmente estressada, então essa viagem vem sendo pura alegria", disse. "Tem tudo a ver com a minha fantasia de construir um barco e subir nele."

Ambicioso e barroco
Wray levou cinco anos para escrever "Canaan's Tongue". O livro tem sua dose devida de elementos improváveis; é uma história ambiciosa e barroca, repleta de linguagem bela e elaborada, ilustrações místicas e esquemas implacáveis. É como se Mark Twain -que, por sinal, conheceu John Murel no rio- tivesse escrito um episódio de "Deadwood" ambientado no Mississippi.
Um dos muitos narradores do livro, Virgil é um profeta maltrapilho e caolho que é encontrado por um pregador anão chamado Redeemer (Redentor) e que adora e teme seu líder, ao mesmo tempo em que trama seu assassinato.
Quando a balsa chegou a Natchez, os tripulantes foram a hotéis para lavar a infinita lama do rio de seus corpos. Ninguém compareceu à sessão de leitura programada para o dia seguinte na cidade. Wray autografou alguns livros e bateu papo com seus compradores. Não importa. Há o rio, essa balsa e, é claro, essa história.
Haverá mais alguns dias no barco jogando pôquer, pescando bagres e arrumando a embarcação. Wray espera fazer uma sessão de leitura em Nova Orleans.
Naquela noite em Natchez, porém, o rio caiu vários pés e deixou a balsa encalhada. Pela manhã, todos afundaram os pés na lama para içar a embarcação- para que a aventura pudesse continuar.


Tradução de Clara Allain

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