São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 2005

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CINEMA/"A MENINA SANTA"

Lucrecia Martel mergulha na riqueza da prosa argentina

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Enquanto no Brasil nos atolamos em ilusões e investimos na fantasiosa idéia de um cinema industrial, alguns argentinos fazem um cinema de primeira linha apoiados em ficções sólidas.
Chamam-se, entre outros, Pablo Trapero, Adrián Caetano ou Lucrecia Martel. Tomemos o caso de "A Menina Santa", escrito e dirigido por Martel, que estréia amanhã em São Paulo. O ponto de apoio é um congresso médico que se realiza num hotel no interior da Argentina, que fará com que se encontrem o dr. Jano e a jovem Amalia.
Passemos pela circunstância mais espetacular da trama, o fato de o respeitável Jano se pôr a bolinar (ou molestar, como se diz pós-modernamente) a garota às escondidas. Martel não trata o caso à maneira moralista, como se o médico devesse passar uns anos atrás das grades para que o mundo estivesse salvo. Há mais coisas entre o céu e a Terra, e na Terra mesmo também.
Primeiro, a religião. Amalia faz parte de um grupo de adolescentes fervorosamente católicas e não recebe a molestação de Jano como ofensa, e sim como um sinal divino: essa é sua missão na vida, salvar esta alma.
Amalia tem um rosto tão estranho quanto essa idéia. Às vezes parece bonita, às vezes não. Seu sorriso, torto e esquivo, parece conter a ambigüidade de suas idéias. O que ela quer afinal? Salvar o dr. Jano? Levá-lo à perdição? Seduzi-lo a pretexto da salvação de sua alma?
A proximidade entre religião e erotismo não é nova. As meninas do grupo católico sabem disso muito bem: vivem comentando os beijos de língua de uma professora. Quanto mais profundo o sentimento religioso, maior a sensualidade. Estamos nas águas de Tereza d'Ávila.
O dr. Jano não parece preocupado com Deus, mas com a salvação, sim. Não aprecia se excitar com menininhas. É algo que lhe acontece e sobre o que não tem controle. Talvez preferisse aceitar a paquera de Helena, a bela mãe de Amalia. Talvez preferisse apenas manter-se fiel à mulher.
O ponto de partida ficcional é, como se vê, explosivo. Tem a riqueza da prosa argentina do século passado e, ao mesmo tempo, essa sensibilidade para o dado incomum, explosivo, que caracteriza o cinema.
No entanto, em vez de explorar seu material para efeito de escândalo, ou bilheteria, ou "comunicação" (essa crença de que o comunicativo, como Jesus, salva), Lucrecia Martel rebaixa-lhe o tom violentamente e, em seguida, dirige-o para a exploração do desejo humano e seu caráter errático.
Sua mise-en-scène é de um rigor absoluto. Seus atores não parecem que foram até o hotel para as filmagens. Parece que estiveram lá a vida inteira, esperando pela câmera de Martel. O próprio hotel, que a diretora nos mostra de maneira extremamente parcial (nem mesmo vemos sua fachada), não parece um cenário de filme. Cada parede, cada móvel, parece contar a história de uma família, de uma cidade.
Cinema voltado a mostrar nada mais do que o essencial, "A Menina Santa" aprofunda o trabalho iniciado no filme anterior da diretora, "O Pântano", e confirma Martel como a cineasta argentina mais original de sua geração -e uma das mais interessantes do mundo na atualidade.


A Menina Santa
La Niña Santa
    
Direção: Lucrecia Martel
Produção: Argentina/França/Itália, 2004
Com: Mercedes Morán, Carlos Belloso, Mía Maestro
Quando: a partir de amanhã nos cines Frei Caneca Unibanco Arteplex, Reserva Cultural, Sala UOL e circuito


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