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CINEMA/"A MENINA SANTA"
Lucrecia Martel mergulha na riqueza da prosa argentina
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Enquanto no Brasil nos atolamos em ilusões e investimos na fantasiosa idéia de um cinema industrial, alguns argentinos fazem um cinema de primeira
linha apoiados em ficções sólidas.
Chamam-se, entre outros, Pablo Trapero, Adrián Caetano ou
Lucrecia Martel. Tomemos o caso
de "A Menina Santa", escrito e dirigido por Martel, que estréia
amanhã em São Paulo. O ponto
de apoio é um congresso médico
que se realiza num hotel no interior da Argentina, que fará com
que se encontrem o dr. Jano e a jovem Amalia.
Passemos pela circunstância
mais espetacular da trama, o fato
de o respeitável Jano se pôr a bolinar (ou molestar, como se diz
pós-modernamente) a garota às
escondidas. Martel não trata o caso à maneira moralista, como se o
médico devesse passar uns anos
atrás das grades para que o mundo estivesse salvo. Há mais coisas
entre o céu e a Terra, e na Terra
mesmo também.
Primeiro, a religião. Amalia faz
parte de um grupo de adolescentes fervorosamente católicas e não
recebe a molestação de Jano como ofensa, e sim como um sinal
divino: essa é sua missão na vida,
salvar esta alma.
Amalia tem um rosto tão estranho quanto essa idéia. Às vezes
parece bonita, às vezes não. Seu
sorriso, torto e esquivo, parece
conter a ambigüidade de suas
idéias. O que ela quer afinal? Salvar o dr. Jano? Levá-lo à perdição?
Seduzi-lo a pretexto da salvação
de sua alma?
A proximidade entre religião e
erotismo não é nova. As meninas
do grupo católico sabem disso
muito bem: vivem comentando
os beijos de língua de uma professora. Quanto mais profundo o
sentimento religioso, maior a sensualidade. Estamos nas águas de
Tereza d'Ávila.
O dr. Jano não parece preocupado com Deus, mas com a salvação, sim. Não aprecia se excitar
com menininhas. É algo que lhe
acontece e sobre o que não tem
controle. Talvez preferisse aceitar
a paquera de Helena, a bela mãe
de Amalia. Talvez preferisse apenas manter-se fiel à mulher.
O ponto de partida ficcional é,
como se vê, explosivo. Tem a riqueza da prosa argentina do século passado e, ao mesmo tempo,
essa sensibilidade para o dado incomum, explosivo, que caracteriza o cinema.
No entanto, em vez de explorar
seu material para efeito de escândalo, ou bilheteria, ou "comunicação" (essa crença de que o comunicativo, como Jesus, salva),
Lucrecia Martel rebaixa-lhe o tom
violentamente e, em seguida, dirige-o para a exploração do desejo
humano e seu caráter errático.
Sua mise-en-scène é de um rigor absoluto. Seus atores não parecem que foram até o hotel para
as filmagens. Parece que estiveram lá a vida inteira, esperando
pela câmera de Martel. O próprio
hotel, que a diretora nos mostra
de maneira extremamente parcial
(nem mesmo vemos sua fachada), não parece um cenário de filme. Cada parede, cada móvel, parece contar a história de uma família, de uma cidade.
Cinema voltado a mostrar nada
mais do que o essencial, "A Menina Santa" aprofunda o trabalho
iniciado no filme anterior da diretora, "O Pântano", e confirma
Martel como a cineasta argentina
mais original de sua geração -e
uma das mais interessantes do
mundo na atualidade.
A Menina Santa
La Niña Santa
Direção: Lucrecia Martel
Produção: Argentina/França/Itália, 2004
Com: Mercedes Morán, Carlos Belloso, Mía Maestro
Quando: a partir de amanhã nos cines
Frei Caneca Unibanco Arteplex, Reserva
Cultural, Sala UOL e circuito
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