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CONTARDO CALLIGARIS
Bartleby
"Bartleby, o Escrivão",
de Herman Melville (o
autor de "Moby Dick"), está se
tornando um pequeno best-seller.
O fato é que a editora, CosacNaify, criou um maravilhoso livro-objeto, que reproduz materialmente o espírito do próprio
Bartleby: fechado e costurado, resistente.
Bartleby é um escrivão, aparentemente zeloso, que um belo dia
começa a recusar, com monótona
e tranqüila determinação, as tarefas que lhe são propostas. "Acho
melhor não": essa frase é tudo o
que ele diz. Seu empregador (o
narrador da novela) não consegue acesso algum à história de vida de Bartleby e às razões pelas
quais ele não aceita ordens e serviços. Bartleby não vai embora,
não se irrita nem esbraveja, apenas se recusa. Exasperador, não
é?
Bartleby já foi explicado de mil
maneiras: um Cristo moderno,
um proletário revoltado, um precursor das personagens das peças
de Samuel Beckett. Como ele não
fala nada (segue silencioso,
achando melhor não), permito-me sugerir minhas duas maneiras
de ler a novela.
1) Não sou um perito em Melville. Li uma boa biografia ("Melville, a Biography", de Laurie Robertson-Lorent) e sempre leio prefácios e posfácios. Basta-me para
saber o que segue. Melville escreveu uma boa parte de suas ficções
curtas entre 1853 e 1856. "Moby
Dick", o romance do qual ele esperava fama e fundos, tinha sido
um fracasso de vendas, em 1851.
Em 1849 nascera Malcolm, seu
primeiro filho, que Melville recebeu atormentado pelo medo de
não conseguir sustentar sua família. Malcolm devia ter quatro ou
cinco anos quando Melville escreveu "Bartleby".
Ora, não consigo me desgrudar
desta idéia: o escrivão, que não
sai do escritório, não quer falar
dele mesmo e se recusa a cumprir
tarefas e pedidos, é curiosamente
parecido com uma criança que
resiste obstinadamente aos pais,
não diz nada (porque não pode
ou não quer) sobre as razões de
sua oposição e, claro, não tem como sair de casa.
Muitos pais reconhecerão, no
"acho melhor não" de Bartleby, o
antagonismo surdo de filhos que,
apesar de mil perguntas dos adultos, mantêm-se obstinadamente
hostis, silenciosos e enigmáticos.
Esse negativismo fechado, sem
conversa, cresce à medida que ele
enfurece os adultos. Se não for encontrado um jeito de trocar palavras e afetos, o prognóstico é delicado. Malcolm, o primeiro filho
de Melville, suicidou-se com um
tiro na cabeça, aos 18 anos.
2) Psiquiatras, psicanalistas e
críticos se debruçaram sobre a
personalidade de Bartleby, que já
foi diagnosticado como esquizofrênico, anoréxico etc. Mas há um
transtorno da personalidade pelo
qual a leitura da novela de Melville vale mais que uma monografia patológica. O "DSM IV - Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais", da American Psychiatric Association, descreve o "transtorno de personalidade agressiva-passiva" como um
padrão de atitudes negativas e de
resistência passiva diante dos pedidos de produzir um desempenho adequado. O sujeito se recusa, passivamente, a cumprir tanto
sua rotina social quanto suas tarefas ocupacionais. A monografia
mais recente sobre esse quadro é
"Passive-Aggression: a Guide for
the Therapist, the Patient and the
Victim" (agressão-passiva: um
guia para o terapeuta, o paciente
e a vítima), de Martin Kantor.
A personalidade agressiva-passiva é tipicamente masculina. Nas
brigas de casais, o homem agressivo-passivo é a parede contra a
qual jogam a louça de casa mulheres enlouquecidas pela fria
compostura de seus companheiros.
Os psiquiatras podem discordar
quanto às causas do transtorno,
que se encontram na vida pregressa do sujeito, mas todos parecem concordar quanto ao seguinte: o agressivo-passivo é cheio de
ódio e ressentimento. Talvez ele se
limite a resistir passivamente para não soltar uma agressão que,
sem isso, seria explosiva e mortífera além da conta.
Pois bem, o que me impressiona, ao ler e reler "Bartleby", é que
essa novela de menos de 40 páginas, em que não aprendemos nada sobre a vida do escrivão ou sobre seus pensamentos, é muito,
mas muito mais rica em sabedoria (inclusive clínica) do que o livro de Kantor (que, aliás, é um
bom livro).
Em outras palavras, o que me
impressiona é sobretudo o milagre da literatura, sua inexplicável
capacidade de nos dar acesso à
experiência humana. Misteriosamente, os silêncios de Melville me
aproximam de Bartleby mais que
as 232 páginas de Kantor.
No fim da coluna da semana
passada, mencionei uma idéia segundo a qual a mediocridade das
"elites" seria o efeito inevitável de
uma mobilidade social acelerada.
Nesse caso, as "elites" econômicas
ou políticas se constituiriam sem
ter a chance de crescer culturalmente. Alguns leitores me responderam que nossas elites já são
carregadas de MBAs e coisas que
os valham. Há um mal-entendido: a cultura não são as coisas
que sabemos, a cultura é nossa
capacidade de compreender (não
só entender) a estranha diversidade de nossa espécie. É uma coisa que se encontra nas salas de cinema, nos teatros e ao abrir, sempre que der, as páginas de uma
obra de ficção. Bartleby, por
exemplo.
@ - ccalligari@uol.com.br
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