São Paulo, sábado, 11 de setembro de 2004

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HISTÓRIA

Valores de Thoreau contrastam com os dos EUA de George W. Bush

CARLOS EDUARDO LINS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No último mês, comemorou-se nos EUA o sesquicentenário da primeira edição de "Walden", a obra-prima de Henry David Thoreau, filósofo, escritor e um dos mais importantes inspiradores de diversos movimentos sociais e políticos do século 20.
Embora haja uma espécie de consenso sobre o caráter tipicamente "americano" do livro, nada poderia estar mais distante dos ensinamentos que o autor tentou enfaticamente transmitir por seu intermédio do que o tipo de vida dominante em seu país nos dias de hoje.
Ao contrário da simplicidade, do respeito à natureza, do pacifismo, do desapego aos bens materiais, da liberdade em relação ao Estado e outros valores que Thoreau pregou em "Walden" e outros escritos, agora nos EUA -e o favoritismo de George W. Bush nas intenções de voto para as eleições de novembro o confirma- o que vigora são o consumismo inconseqüente, a irresponsabilidade ambiental, a preponderância do Estado, o belicismo extremado.
Talvez tenham razão os que dizem que a importância de Thoreau atualmente é servir de consciência crítica para seus compatriotas e fonte de inspiração para a minoria que ainda acredita nos seus ideais. Nesse sentido, a divulgação, ainda que discreta, dada ao aniversário de "Walden" -por mais contraditório com seu espírito que tenha sido, por exemplo, o lançamento de edições luxuosíssimas da obra- cumpriu um papel importante.
As reportagens que saudaram a data não puderam deixar de chamar a atenção do público para a imensa distância que existe entre a prática dos EUA como país -que, por exemplo, recusa o Protocolo de Kyoto e nada faz para diminuir as conseqüências potencialmente catastróficos do efeito-estufa sobre o planeta- e os princípios que Thoreau gostaria que seus conterrâneos tivessem seguido.
Em 1845, Thoreau -recém-formado pela já prestigiosa e exclusiva Universidade Harvard- construiu uma cabana -ao custo de US$ 28- às margens do lago Walden, nas proximidades da cidade de Concord, no Estado de Massachusetts, Costa Leste dos EUA.
Ali, viveu por dois anos, do seu esforço e das oportunidades que a natureza lhe oferecia para manter-se. E escreveu um diário, base do livro que modestamente publicou em 1854. Levou cinco anos para a primeira edição (de 2.000 exemplares) se esgotar.
Com o tempo, o livro se tornou um best-seller, com mais de 200 edições e traduções para 25 línguas além do inglês. Ele foi uma referência essencial do movimento ecológico nos anos 1950 e da contracultura das décadas de 60 e 70 do século passado.
Além disso, seu estilo de prosa -direto, despojado, límpido- influenciou de maneira decisiva a literatura americana, de Mark Twain a Ernest Hemingway. Algumas de suas frases estão entre as mais comumente lembradas por cidadãos americanos em qualquer ocasião, como a que descreve a maioria dos homens e suas vidas de "silencioso desespero" (quite desperation). Infelizmente, as citações a "Walden" quase sempre se limitam a produzir efeito retórico e raramente conduzem à ação.
Thoreau, que antes de "Walden" já havia publicado "A Desobediência Civil" (livro que influenciou decisivamente a resistência pacífica de Gandhi, Luther King e outros, fundamentou filosoficamente a resistência dinamarquesa na Segunda Guerra Mundial, a luta contra o apartheid na África do Sul e o combate à Guerra do Vietnã nos EUA nos anos 60 e 70), embora seja muito lembrado é muito pouco lido em sua própria terra.
Mesmo assim, o simples fato de ele ter existido e de suas idéias encontrarem algum eco -mesmo neste início de século 21 tão pouco receptivo a qualquer discurso que não faça a apologia da guerra- é um sinal de esperança para o futuro dos EUA que não pode ser menosprezado.


Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista e diretor da Patri Relações Governamentais e Políticas Públicas


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