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RESENHA DA SEMANA
A loucura dos cães
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
O primeiro parágrafo do novo livro de Christine Angot,
"L'Inceste" ("O Incesto"), um
dos maiores sucessos da temporada de lançamentos na
França, é um pastiche do início
de "Ao Amigo que Não me Salvou a Vida", de Hervé Guibert.
"Estive com Aids por três
meses. Mais exatamente, acreditei por três meses que estava
condenado por essa doença
mortal que chamamos de
Aids", escreveu Guibert em seu
romance publicado em 1990,
dois anos antes de morrer.
"Fui homossexual por três
meses. Mais exatamente, três
meses, acreditei que estava
condenada a isso", escreve
Christine num livro (o oitavo
que publica desde 1990) provocativo ao extremo, cheio de humor e politicamente incorreto,
que ela não ousa chamar de romance, porque se desenrola
numa linha perturbadora entre
o relato autobiográfico e a ficção, propositalmente enfumaçados para não deixar ao leitor
mais nenhuma certeza.
Christine Angot não é lésbica. É o que repete a narradora
ao longo de "O Incesto", que
conta paradoxalmente sua história de amor com outra mulher -e o processo de uma crise de paranóia daí decorrente.
Tudo é narrado por um mecanismo de denegação desesperado e cômico, que não pára
de se desdizer: "Pff. Pff, realmente. Eu não queria. Nunca
tinha sido homossexual. Os
seios nunca me interessaram.
Incluindo os meus. (...) Quando senti como era grudento!
Tirei a mão. (...) Ela era muito
homossexual, tinha tudo, a gata, a cadela. Eu estava fascinada
pela homossexualidade".
Só nas últimas cinquenta páginas surge por fim o assunto
tabu do título. A crise paranóica leva Christine a "confessar",
fazendo eco a uma tendência
comportamental recente, sua
relação sexual com o pai na
adolescência. Mas confessar
não seria bem o termo, porque
o motor que faz o texto avançar
é fruto de uma contradição
sempre renovada e irônica.
"A escrita é uma muralha
contra a loucura, já tenho muita sorte de ser escritora, de ter
ao menos essa possibilidade.
(...) Este livro vai ser tomado
como uma merda de testemunho. Como evitar? (...) Este livro vai ser tomado como um
testemunho sobre a sabotagem
da vida das mulheres. As associações que lutam contra o incesto vão disputá-lo a tapas.
Até os meus livros são sabotados. Tomar este livro como
uma merda de testemunho será uma sabotagem, mas é o que
vocês vão fazer."
Em "O Incesto", como nos livros anteriores, Christine
monta uma exposição de si,
uma espécie de "instalação",
segundo a revista "Les Inrockuptibles", que é ao mesmo
tempo sedução e disfarce -e
lembra um pouco o espaço "íntimo" de Ana Cristina César, só
que descomedido-, um jogo
de esconde-esconde, de aparentes revelações que se desdobram em decepções resgatadas
apenas pelo humor surpreendente das armadilhas.
Christine insiste que esse não
é um jogo literário: "Não estou
ficando louca, fiquei louca, sou
louca. (...) Não tem nada de debochado ou impertinente nisso. Não é um jogo. Não estou
gozando da sua cara". Mas nada garante que a autora tenha
de repente abandonado o mecanismo de denegação (o amor
dizendo que não é amor, o artifício literário dizendo que não é
artifício) que faz a originalidade do seu estilo.
"Nunca, você está me ouvindo bem, nunca eu tive desejo
por uma mulher. O sexo do homem penetra de um jeito radical. Gosto do que é radical. Há
outras penetrações possíveis,
as fronteiras, as viagens."
O mais radical em "O Incesto" é a idéia de ultrapassar essa
fronteira tênue entre autobiografia e ficção, chafurdar o texto nessa ambiguidade. "Não
sou Nietzsche, não sou Nijinski, não sou Artaud, não sou Genet, sou Christine Angot, lanço
mão dos meios de que disponho."
Ao se expor num processo de
auto-ironia que nem por isso
exclui a comoção e o desespero
reais (não há cinismo), Christine vai derrubar um tipo de mitologia pessoal construída em
torno do autor/narrador que
fez a fama tanto de Hervé Guibert como de Marguerite Duras, dois nomes bastante significativos da prosa francesa pós-nouveau roman. Sua loucura
não se leva a sério (e de alguma
forma acaba se levando), o que
a torna ainda mais verdadeira
em seus paradoxos e contradições.
"Como fiquei louca, vocês
vão compreender, eu espero. E
se não for suficiente, farei outros livros mais. Muitos mais.
(...) Talvez isso me tome até a
morte, mas ao final vocês todos
terão entendido como enlouqueci. (...) Havia uma igreja naquele vilarejo e o confessionário viu minha boca aberta sobre o sexo do meu pai. (...) Os
cães são burros, você lhes faz
chupar um osso de plástico, e
eles são burros, os cães, eles
acreditam. Nem vêem o que estão chupando. É terrível ser um
cão."
Avaliação:
Livro: L"Inceste
Autora: Christine Angot
Lançamento: Editions Stock
Preço: 105 francos (217 págs.)
Onde encontrar: www.alapage.com
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