São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
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RESENHA DA SEMANA
A loucura dos cães

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

O primeiro parágrafo do novo livro de Christine Angot, "L'Inceste" ("O Incesto"), um dos maiores sucessos da temporada de lançamentos na França, é um pastiche do início de "Ao Amigo que Não me Salvou a Vida", de Hervé Guibert.
"Estive com Aids por três meses. Mais exatamente, acreditei por três meses que estava condenado por essa doença mortal que chamamos de Aids", escreveu Guibert em seu romance publicado em 1990, dois anos antes de morrer.
"Fui homossexual por três meses. Mais exatamente, três meses, acreditei que estava condenada a isso", escreve Christine num livro (o oitavo que publica desde 1990) provocativo ao extremo, cheio de humor e politicamente incorreto, que ela não ousa chamar de romance, porque se desenrola numa linha perturbadora entre o relato autobiográfico e a ficção, propositalmente enfumaçados para não deixar ao leitor mais nenhuma certeza.
Christine Angot não é lésbica. É o que repete a narradora ao longo de "O Incesto", que conta paradoxalmente sua história de amor com outra mulher -e o processo de uma crise de paranóia daí decorrente.
Tudo é narrado por um mecanismo de denegação desesperado e cômico, que não pára de se desdizer: "Pff. Pff, realmente. Eu não queria. Nunca tinha sido homossexual. Os seios nunca me interessaram. Incluindo os meus. (...) Quando senti como era grudento! Tirei a mão. (...) Ela era muito homossexual, tinha tudo, a gata, a cadela. Eu estava fascinada pela homossexualidade".
Só nas últimas cinquenta páginas surge por fim o assunto tabu do título. A crise paranóica leva Christine a "confessar", fazendo eco a uma tendência comportamental recente, sua relação sexual com o pai na adolescência. Mas confessar não seria bem o termo, porque o motor que faz o texto avançar é fruto de uma contradição sempre renovada e irônica.
"A escrita é uma muralha contra a loucura, já tenho muita sorte de ser escritora, de ter ao menos essa possibilidade. (...) Este livro vai ser tomado como uma merda de testemunho. Como evitar? (...) Este livro vai ser tomado como um testemunho sobre a sabotagem da vida das mulheres. As associações que lutam contra o incesto vão disputá-lo a tapas. Até os meus livros são sabotados. Tomar este livro como uma merda de testemunho será uma sabotagem, mas é o que vocês vão fazer."
Em "O Incesto", como nos livros anteriores, Christine monta uma exposição de si, uma espécie de "instalação", segundo a revista "Les Inrockuptibles", que é ao mesmo tempo sedução e disfarce -e lembra um pouco o espaço "íntimo" de Ana Cristina César, só que descomedido-, um jogo de esconde-esconde, de aparentes revelações que se desdobram em decepções resgatadas apenas pelo humor surpreendente das armadilhas.
Christine insiste que esse não é um jogo literário: "Não estou ficando louca, fiquei louca, sou louca. (...) Não tem nada de debochado ou impertinente nisso. Não é um jogo. Não estou gozando da sua cara". Mas nada garante que a autora tenha de repente abandonado o mecanismo de denegação (o amor dizendo que não é amor, o artifício literário dizendo que não é artifício) que faz a originalidade do seu estilo.
"Nunca, você está me ouvindo bem, nunca eu tive desejo por uma mulher. O sexo do homem penetra de um jeito radical. Gosto do que é radical. Há outras penetrações possíveis, as fronteiras, as viagens."
O mais radical em "O Incesto" é a idéia de ultrapassar essa fronteira tênue entre autobiografia e ficção, chafurdar o texto nessa ambiguidade. "Não sou Nietzsche, não sou Nijinski, não sou Artaud, não sou Genet, sou Christine Angot, lanço mão dos meios de que disponho."
Ao se expor num processo de auto-ironia que nem por isso exclui a comoção e o desespero reais (não há cinismo), Christine vai derrubar um tipo de mitologia pessoal construída em torno do autor/narrador que fez a fama tanto de Hervé Guibert como de Marguerite Duras, dois nomes bastante significativos da prosa francesa pós-nouveau roman. Sua loucura não se leva a sério (e de alguma forma acaba se levando), o que a torna ainda mais verdadeira em seus paradoxos e contradições.
"Como fiquei louca, vocês vão compreender, eu espero. E se não for suficiente, farei outros livros mais. Muitos mais. (...) Talvez isso me tome até a morte, mas ao final vocês todos terão entendido como enlouqueci. (...) Havia uma igreja naquele vilarejo e o confessionário viu minha boca aberta sobre o sexo do meu pai. (...) Os cães são burros, você lhes faz chupar um osso de plástico, e eles são burros, os cães, eles acreditam. Nem vêem o que estão chupando. É terrível ser um cão."


Avaliação:    

Livro: L"Inceste Autora: Christine Angot Lançamento: Editions Stock Preço: 105 francos (217 págs.) Onde encontrar: www.alapage.com

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