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BERNARDO CARVALHO
Ponto cego
Há uma semana, aluguei
um carro na fronteira da
França com a Espanha e fui até
Bilbao visitar o Guggenheim e a
exposição permanente de oito esculturas penetráveis -"receptáculos", nas palavras de Richard
Serra, que as concebeu- instaladas desde junho na maior sala do
museu. O conjunto se chama "A
Matéria do Tempo" e é, literalmente, uma das obras mais estonteantes (o adjetivo não é aleatório) do artista americano.
Por uma estranha coincidência,
sempre que eu chegava ao centro
de uma das imensas esculturas
(labirintos espirais feitos de enormes placas de aço, curvas e inclinadas), lá estava a mesma mulher sozinha, com um daqueles fones que o museu oferece à maneira de um guia eletrônico, com as
informações sobre as obras, colado ao ouvido, sorrindo para mim,
como se estivesse à minha espera.
Podia ser uma coincidência sinistra, ou simplesmente cômica, dependendo do ponto de vista. Era
sem dúvida a expressão natural e
simpática de uma cumplicidade
provocada pela urgência de compartilhar a revelação da experiência. Mas também podia ser o
sinal aterrorizante de uma aparição reiterativa e fantasmagórica,
se a realidade fosse um filme de
horror.
Serra concebeu as oito peças especialmente para o museu. A intenção era fazer com que a complexidade das formas, seu "ritmo"
(a duração da experiência do espectador), pudesse provocar uma
sensação subjetiva da "materialidade" do tempo. A matéria transformada em duração.
Bilbao já foi um importante
centro de produção de aço. As peças se adaptam às formas do impressionante prédio de Frank
Gehry, que se modificam e se redescobrem conforme o espectador
se desloca no seu interior e ao redor, como um organismo vivo. Na
verdade, as esculturas reinterpretam o prédio que as envolve e
abriga. Potencializam uma dimensão que não estava explícita
no edifício, embora estivesse presente. Tornam consciente uma dimensão recalcada nas formas: a
materialização do tempo.
Uma das esculturas ("Serpente", três placas de aço, de cerca de
4 m de altura e uns 20 m de comprimento, que serpenteiam pela
galeria e entre as quais o visitante
avança) já ocupava o centro da
sala desde a inauguração do museu. Era apenas o começo. Em junho, Serra instalou as outras sete,
completando o conjunto de "torções elípticas", que culmina com
um "Ponto Cego Invertido", a
apoteose do trabalho, embora o
artista insista em dizer que não
deve haver ordem ou progressão
predeterminada para a visita.
Cada um escolhe o seu próprio caminho pelos labirintos.
Em todas as esculturas, as paredes curvas e inclinadas mudam
de repente de inclinação (estreitam-se ou afastam-se no topo),
como tiras de borracha que, postas de pé, se curvassem sob o efeito
da gravidade, de modo que o espectador se desequilibra entre as
paredes conforme avança pelos
estreitos corredores que elas formam e deformam. Tem a impressão de que o chão se move consigo
e de que o ambiente está prestes a
esmagá-lo, já não sabe se está
protegido ou perdido, se não foi
engolido pelo que o envolve.
A diferença do "Ponto Cego"
em relação às esculturas precedentes é que, no lugar das curvas
contínuas, há nesta última obra,
no fundo da sala, uma espécie de
ziguezague em seis seções, seis interrupções, seis quinas que quebram a continuidade das curvas
internas, de modo que o caminho
continua a se reproduzir (para
dentro da escultura) onde parecia
acabar, dá a impressão de se desdobrar, se renovar e se repetir infinitamente rumo a um interior
que parece não poder ser atingindo e onde a certa altura o visitante um tanto desnorteado prefere
supor (é uma reação natural à
sensação da perda do sentido do
todo; é o que lhe resta) que encontrará a saída, mesmo que seja por
um passe de mágica. É claro que
não a encontra.
A reprodução dos pontos cegos
(as quinas ao final de cada curva)
no interior do labirinto não apenas desnorteia e desequilibra,
não apenas cria a expectativa pelo que virá a seguir e a surpresa
do inesperado, como acontecia
com as inclinações das paredes
curvas das outras esculturas, mas
provoca uma sensação de apreensão e medo, como se por uma distração mínima, um pequeno erro,
estivéssemos de repente perdidos
no interior de um mecanismo que
se reproduz para dentro, avançando rumo ao que parece uma
saída, mas que nos aprisiona cada vez mais, nos afasta cada vez
mais da possibilidade de sair.
Numa entrevista a Hal Foster,
Serra diz que é preciso "encontrar
uma maneira de transgredir as
formas e vê-las renovadas, com
outros olhos": "Continuo sem ter
interesse pela imagem em si. A
forma é construída pelo vazio". A
forma não basta por si mesma. O
sentido das esculturas de "A Matéria do Tempo" só existe pelo
movimento do espectador entre e
no interior das peças, depende da
sua experiência, de sua duração,
e tem por objetivo provocá-la. É
uma concepção simples e poderosa das artes, que dispensa curadores e legendas, mas não a inteligência crítica, e que põe por terra
os academicismos, os modismos e
os dogmatismos, em nome de
uma obra aberta, generosa e imbuída de uma vontade de perenidade no movimento e na transformação, decidida a participar
das criações futuras de todos
aqueles que a penetraram, tanto
quanto eles participaram de sua
criação ao penetrá-la.
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