São Paulo, terça-feira, 11 de outubro de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Ponto cego

Há uma semana, aluguei um carro na fronteira da França com a Espanha e fui até Bilbao visitar o Guggenheim e a exposição permanente de oito esculturas penetráveis -"receptáculos", nas palavras de Richard Serra, que as concebeu- instaladas desde junho na maior sala do museu. O conjunto se chama "A Matéria do Tempo" e é, literalmente, uma das obras mais estonteantes (o adjetivo não é aleatório) do artista americano.
Por uma estranha coincidência, sempre que eu chegava ao centro de uma das imensas esculturas (labirintos espirais feitos de enormes placas de aço, curvas e inclinadas), lá estava a mesma mulher sozinha, com um daqueles fones que o museu oferece à maneira de um guia eletrônico, com as informações sobre as obras, colado ao ouvido, sorrindo para mim, como se estivesse à minha espera. Podia ser uma coincidência sinistra, ou simplesmente cômica, dependendo do ponto de vista. Era sem dúvida a expressão natural e simpática de uma cumplicidade provocada pela urgência de compartilhar a revelação da experiência. Mas também podia ser o sinal aterrorizante de uma aparição reiterativa e fantasmagórica, se a realidade fosse um filme de horror.
Serra concebeu as oito peças especialmente para o museu. A intenção era fazer com que a complexidade das formas, seu "ritmo" (a duração da experiência do espectador), pudesse provocar uma sensação subjetiva da "materialidade" do tempo. A matéria transformada em duração.
Bilbao já foi um importante centro de produção de aço. As peças se adaptam às formas do impressionante prédio de Frank Gehry, que se modificam e se redescobrem conforme o espectador se desloca no seu interior e ao redor, como um organismo vivo. Na verdade, as esculturas reinterpretam o prédio que as envolve e abriga. Potencializam uma dimensão que não estava explícita no edifício, embora estivesse presente. Tornam consciente uma dimensão recalcada nas formas: a materialização do tempo.
Uma das esculturas ("Serpente", três placas de aço, de cerca de 4 m de altura e uns 20 m de comprimento, que serpenteiam pela galeria e entre as quais o visitante avança) já ocupava o centro da sala desde a inauguração do museu. Era apenas o começo. Em junho, Serra instalou as outras sete, completando o conjunto de "torções elípticas", que culmina com um "Ponto Cego Invertido", a apoteose do trabalho, embora o artista insista em dizer que não deve haver ordem ou progressão predeterminada para a visita. Cada um escolhe o seu próprio caminho pelos labirintos.
Em todas as esculturas, as paredes curvas e inclinadas mudam de repente de inclinação (estreitam-se ou afastam-se no topo), como tiras de borracha que, postas de pé, se curvassem sob o efeito da gravidade, de modo que o espectador se desequilibra entre as paredes conforme avança pelos estreitos corredores que elas formam e deformam. Tem a impressão de que o chão se move consigo e de que o ambiente está prestes a esmagá-lo, já não sabe se está protegido ou perdido, se não foi engolido pelo que o envolve.
A diferença do "Ponto Cego" em relação às esculturas precedentes é que, no lugar das curvas contínuas, há nesta última obra, no fundo da sala, uma espécie de ziguezague em seis seções, seis interrupções, seis quinas que quebram a continuidade das curvas internas, de modo que o caminho continua a se reproduzir (para dentro da escultura) onde parecia acabar, dá a impressão de se desdobrar, se renovar e se repetir infinitamente rumo a um interior que parece não poder ser atingindo e onde a certa altura o visitante um tanto desnorteado prefere supor (é uma reação natural à sensação da perda do sentido do todo; é o que lhe resta) que encontrará a saída, mesmo que seja por um passe de mágica. É claro que não a encontra.
A reprodução dos pontos cegos (as quinas ao final de cada curva) no interior do labirinto não apenas desnorteia e desequilibra, não apenas cria a expectativa pelo que virá a seguir e a surpresa do inesperado, como acontecia com as inclinações das paredes curvas das outras esculturas, mas provoca uma sensação de apreensão e medo, como se por uma distração mínima, um pequeno erro, estivéssemos de repente perdidos no interior de um mecanismo que se reproduz para dentro, avançando rumo ao que parece uma saída, mas que nos aprisiona cada vez mais, nos afasta cada vez mais da possibilidade de sair.
Numa entrevista a Hal Foster, Serra diz que é preciso "encontrar uma maneira de transgredir as formas e vê-las renovadas, com outros olhos": "Continuo sem ter interesse pela imagem em si. A forma é construída pelo vazio". A forma não basta por si mesma. O sentido das esculturas de "A Matéria do Tempo" só existe pelo movimento do espectador entre e no interior das peças, depende da sua experiência, de sua duração, e tem por objetivo provocá-la. É uma concepção simples e poderosa das artes, que dispensa curadores e legendas, mas não a inteligência crítica, e que põe por terra os academicismos, os modismos e os dogmatismos, em nome de uma obra aberta, generosa e imbuída de uma vontade de perenidade no movimento e na transformação, decidida a participar das criações futuras de todos aqueles que a penetraram, tanto quanto eles participaram de sua criação ao penetrá-la.


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