São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ LITERÁRIO

Em companhia da dor, RSVP


Além do cronista do cotidiano de boêmios e miseráveis, Roth foi romancista de talento


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

JUDEU DE expressão alemã, nascido em Brody, nos estertores do Império Austro-Húngaro, Joseph Roth (1894-1939) foi voz importante na Berlim dos anos 20, precursor de um jornalismo literário que registrava tipos e sintomas da crise totalitária se avolumando, sensível às primeiras rachaduras no ovo da serpente econômico e político.
Na metrópole sempre em obras, encontrou seu assunto justamente nessa geografia urbana convulsa, justapondo espaços -o bairro judaico, os banhos públicos, os inferninhos, os parques- e tipos humanos contrastantes.
Mas, além do cronista arguto do cotidiano de boêmios e miseráveis compartilhando a mesma atmosfera de urgência, promessa e dissolução (levando à denúncia do anti-semitismo e da barbárie ascendentes), de que "Berlim" (2006, Companhia das Letras), dá uma boa idéia, Roth foi romancista de talento, prefigurando a ascensão nazista em "A Teia de Aranha" (1932), e atualizando o episódio bíblico de Jó na história de um judeu oriental, Mendel Singer, apanhado pelo infortúnio em um vilarejo russo no começo do século 20.
Uma das narrativas bíblicas estruturalmente mais arquetípicas (armada sob a forma da parábola invertida, fazendo seu protagonista experimentar, pela ordem, segurança, abalo e remissão), a história do homem simples, justo e pio que, sem razão aparente, é posto à prova por uma sucessão de privações e um acúmulo de dor e sofrimento sem fim tem enorme apelo dramático.
Os que tiveram a boa sorte de travar contato com o espetáculo do Teatro da Vertigem sobre o "Livro de Jó", em 1995, podem atestar.
A pergunta sobre até que ponto se preserva a humanidade subtraída de traços essenciais à dignidade humana (o "É Isto um Homem?" de Primo Levi) , a urgência por motivação e alguma forma de resgate, transcendente ou não, do sofrimento, a vontade de um tribunal julgado às claras, em que o acusador mostre o rosto, também está por trás de uma obra essencial como a de Kafka.
Roth (que não tem parentesco com o americano Philip) faz parte de uma geração de autores alemães que, moderna nas preocupações, explorou habilmente um realismo tradicionalista na forma (os Mann, Stefan Zweig), de aparência quase anacrônica. Escolheu para seu Jó um modesto professor de meninos, confrontando sua fé pouco questionadora a um mundo cada vez mais hostil, coincidindo com o colapso europeu e a cruenta guerra de 1914.
O sobressalto desconfiado, historicamente justificado, que animava a convivência dos judeus com os cossacos sob as botas do Czar está ali tão bem apanhado quanto a dura ascensão americana das primeiras gerações de imigrantes. Sem perder a força mítica do personagem, Roth atualiza historicamente a dúvida e a ferida humanas que ele encobre.


Autor: Joseph Roth
Tradução: Laura Barreto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44 (200 págs.)
Avaliação: bom



Texto Anterior: Crítica/"Folha Explica Tom Jobim": Autor acerta em recorte sobre obra de Jobim
Próximo Texto: Televisão: Caixa reúne primeira temporada de "He-Man"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.