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São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 2003

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MÚSICA ERUDITA

A alta forma de alegria de Keith Jarrett e seu trio

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Quem conta a história é o próprio Keith Jarrett, no encarte. Foi em julho de 2002. O pianista estava num festival de jazz na Côte d'Azur (França), com seus parceiros de 20 anos, o contrabaixista Gary Peacock e o baterista Jack DeJohnette. A cidadezinha de Juan-Les-Pins é conhecida pelo festival ao ar livre, pela beleza da praia e pelo clima de paraíso.
Naquela semana, chovia sem parar. Não bastasse isso, os três chegaram lá deprimidos: Peacock, com 67 anos, saindo de uma operação de câncer; DeJohnette, 59, sofrendo as sequelas de um acidente, um painel que desabara sobre sua cabeça justamente ali, no ano anterior; e Jarrett, 57, recuperando-se da encefalite que o vem deixando incapacitado por longos períodos, desde 1996.
O trio jantava embaixo de uma tenda na areia, atrás do palco, decidido a cancelar o show. A chuva parou por alguns minutos; um solzinho apareceu. Jarrett tomou isso por um sinal e convenceu os outros dois a tocar. Dali para a frente, a história está registrada em disco.
O momento decisivo acontece aos 51 segundos. É quando o baterista aceita o milagre -Keith Jarrett tocando piano- e ataca pela primeira vez um prato. Quatro segundos depois, é Gary Peacock quem tange um fá bem longo, pondo o círculo das quintas para funcionar -dominante da dominante da dominante- e recriando a vida em lá bemol maior.
Nesse minuto, existe música suficiente para sustentar um ano. Primeiro Jarrett sozinho, embora já pareça três: a mão direita desenhando com fluência uma melodia angulosa e sestrosa; a esquerda fazendo um contraponto no baixo que dá a impressão de estar noutro pulso, quase como aquelas pianolas fantásticas do compositor Conlon Nancarrow; e a mão do meio marcando acordes bem curtos, sincopados.
Depois DeJohnette, o mais elegante dos percussionistas, que toca bateria como se fosse uma harpa de 1.001 timbres. A entrada do contrabaixo libera o piano harmonicamente e ritmicamente a bateria. É quando a música vira um organismo, uma entidade natural, embora também expresse a mais alta forma de filosofia.
Mais contundente ainda é a alta forma de alegria. Não parece exatamente júbilo. Está mais para confiança, ou entrega. Um engajamento voluntarioso e positivo no mundo. Ao longo de todo o repertório -que segue o padrão da maioria dos outros 15 discos do trio, reinterpretando "standards" consagrados, como "My Funny Valentine", "Autumn Leaves" e "Someday My Prince Will Come"- não é isso o que mais encanta e mais comove? E não é isso o que Jarrett quer dizer, quando fala da "chocante falta de poesia no mundo"?
Dessa perspectiva, ganham outro apelo também os prodígios de continuidade que o pianista vai desfiando, como se tudo estivesse dentro da canção original e só fosse preciso... continuar.
Seja nas vitalidades do be-bop, seja nas felicidades do cancioneiro, a música de Keith Jarrett não perde nunca esse compromisso. Foi um acaso, decerto, mas faz todo o sentido que o disco termine voltando ao piano sozinho e sumindo. O disco não acaba: recomeça. No meio do caminho da chuva, esse ciclo é um sol.


Up for It    
Artistas: Jarrett, Peacock, DeJohnette
Lançamento: ECM
Quanto: R$ 55, em média (importado)



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