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MÚSICA ERUDITA
A alta forma de alegria de Keith Jarrett e seu trio
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Quem conta a história é o próprio Keith Jarrett, no encarte. Foi em julho de 2002. O pianista estava num festival de jazz na
Côte d'Azur (França), com seus
parceiros de 20 anos, o contrabaixista Gary Peacock e o baterista
Jack DeJohnette. A cidadezinha
de Juan-Les-Pins é conhecida pelo festival ao ar livre, pela beleza
da praia e pelo clima de paraíso.
Naquela semana, chovia sem
parar. Não bastasse isso, os três
chegaram lá deprimidos: Peacock, com 67 anos, saindo de uma
operação de câncer; DeJohnette,
59, sofrendo as sequelas de um
acidente, um painel que desabara
sobre sua cabeça justamente ali,
no ano anterior; e Jarrett, 57, recuperando-se da encefalite que o
vem deixando incapacitado por
longos períodos, desde 1996.
O trio jantava embaixo de uma
tenda na areia, atrás do palco, decidido a cancelar o show. A chuva
parou por alguns minutos; um
solzinho apareceu. Jarrett tomou
isso por um sinal e convenceu os
outros dois a tocar. Dali para a
frente, a história está registrada
em disco.
O momento decisivo acontece
aos 51 segundos. É quando o baterista aceita o milagre -Keith Jarrett tocando piano- e ataca pela
primeira vez um prato. Quatro segundos depois, é Gary Peacock
quem tange um fá bem longo,
pondo o círculo das quintas para
funcionar -dominante da dominante da dominante- e recriando a vida em lá bemol maior.
Nesse minuto, existe música suficiente para sustentar um ano.
Primeiro Jarrett sozinho, embora
já pareça três: a mão direita desenhando com fluência uma melodia angulosa e sestrosa; a esquerda fazendo um contraponto no
baixo que dá a impressão de estar
noutro pulso, quase como aquelas pianolas fantásticas do compositor Conlon Nancarrow; e a
mão do meio marcando acordes
bem curtos, sincopados.
Depois DeJohnette, o mais elegante dos percussionistas, que toca bateria como se fosse uma harpa de 1.001 timbres. A entrada do
contrabaixo libera o piano harmonicamente e ritmicamente a
bateria. É quando a música vira
um organismo, uma entidade natural, embora também expresse a
mais alta forma de filosofia.
Mais contundente ainda é a alta
forma de alegria. Não parece exatamente júbilo. Está mais para
confiança, ou entrega. Um engajamento voluntarioso e positivo
no mundo. Ao longo de todo o repertório -que segue o padrão da
maioria dos outros 15 discos do
trio, reinterpretando "standards"
consagrados, como "My Funny
Valentine", "Autumn Leaves" e
"Someday My Prince Will Come"- não é isso o que mais encanta e mais comove? E não é isso
o que Jarrett quer dizer, quando
fala da "chocante falta de poesia
no mundo"?
Dessa perspectiva, ganham outro apelo também os prodígios de
continuidade que o pianista vai
desfiando, como se tudo estivesse
dentro da canção original e só fosse preciso... continuar.
Seja nas vitalidades do be-bop,
seja nas felicidades do cancioneiro, a música de Keith Jarrett não
perde nunca esse compromisso.
Foi um acaso, decerto, mas faz todo o sentido que o disco termine
voltando ao piano sozinho e sumindo. O disco não acaba: recomeça. No meio do caminho da
chuva, esse ciclo é um sol.
Up for It
Artistas: Jarrett, Peacock, DeJohnette
Lançamento: ECM
Quanto: R$ 55, em média (importado)
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