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BERNARDO CARVALHO
Manhã e noite
Num pequeno romance do
norueguês Jon Fosse publicado neste ano na França, a
morte começa com o nascimento.
"Manhã e Noite" ("Morgon og
Kveld", 2000) é dividido em duas
partes: o nascimento de Johannes
e sua morte. Na primeira parte,
um jovem pai espera apreensivo
o parto da mulher no quarto ao
lado. Na segunda parte, o recém-nascido da primeira parte, agora
velho e viúvo, encontra o fantasma de um amigo saudoso e descobre que também está morto,
morreu naquela manhã.
Nascimento e morte se confundem. Com o nascimento, começam as preocupações do pai, e do
leitor, que sente a morte à espreita, nas descrições de Fosse, na
maneira como, concluído o parto, a parteira diz que tem que ir
embora e aconselha o jovem casal a chamá-la no caso da menor
irregularidade.
A consciência da morte começa
com o nascimento. E enquanto o
pai espera o desenrolar do parto,
é na vida como percurso do nada
ao nada que ele pensa. Na vida
como morte, o que remete à peça
de Jon Fosse recém-encenada em
Paris, por Claude Régy, dentro
da programação do Festival de
Outono.
"Variações sobre a Morte" fala
do nascimento e do suicídio de
uma moça. A confusão entre
nascimento e morte, nessa peça,
vem do fato de o espectador já
não conseguir distinguir entre o
fim e o começo, o presente e o
passado. O tempo é simultâneo.
Cinco personagens se alternam e
dialogam no palco, mas nem todos vivem no mesmo momento,
uns são a lembrança ou a projeção dos outros. Há o casal jovem,
começando a vida sem dinheiro,
quando a mulher ainda está grávida da menina. Mas há também
o casal, já velho e separado, depois da morte da filha. E há, ao
mesmo tempo, a filha, que circula entre as expectativas do jovem
casal e as lembranças dos pais velhos e desiludidos.
Régy sempre se interessou por
novos dramaturgos. Foi ele quem
revelou o teatro de Peter Handke
e Botho Strauss aos franceses, nos
anos 70. Sua montagem de "4.48
Psicose", da inglesa Sarah Kane,
foi apresentada em fevereiro em
São Paulo. "Variações sobre a
Morte" é o seu terceiro trabalho
com um texto desse autor norueguês nascido em 1959 e considerado um dos expoentes da nova
dramaturgia européia.
A confusão entre nascimento e
morte, a simultaneidade entre o
passado e o presente está expressa na própria concepção do cenário da montagem francesa: um
simples plano, ligeiramente inclinado, iluminado por uma luz
dura e branca, que parece flutuar
no vazio, suspenso no espaço escuro que o envolve. Tempo e espaço passam a ser a mesma coisa. O cenário é a materialização
do tempo. Ou a sua interrupção.
Entre as palestras agendadas
paralelamente à peça, houve a de
um físico sobre as diversas possibilidades de compreensão do
tempo. No texto do programa,
Fosse diz compreender cada vez
menos as formas como os homens tentam compreender as
coisas (pelos conceitos, pela teoria) e que cada vez mais procura
uma forma alternativa de compreensão (pela ficção, pela poesia), uma linguagem que seja algo em si antes de significar alguma coisa.
Logo no início da peça, a mãe
velha fala de uma "ordem transfigurada" que só se deixará compreender quando "compreendermos o que compreender quer dizer". A menina, atraída por um
homem que representa tanto o
amor como a morte, diz que tem
a impressão de conhecê-lo desde
sempre: "O amor se parece com a
morte". E os textos de Jon Fosse
parecem querer nos dizer que vemos opostos em tudo, como uma
forma capenga de tentar compreender o que é incompreensível, quando no fundo não há distinção entre a vida e a morte, o
passado e o presente, o espaço e o
tempo, a felicidade e a dor, a manhã e a noite.
Em boa parte da montagem de
Régy, os atores são iluminados
pelas costas. Eles evoluem como
fantasmas ("estamos aqui o tempo todo e nunca estamos"), em
câmera lenta, por esse plano suspenso no vazio, com os movimentos entrecortados como os
dos bonecos da velha série de TV
"Thunderbird". As falas também
são entrecortadas, disfuncionais,
uma marca registrada do diretor
francês para fazer sobressair a
linguagem em detrimento do
sentido, o vazio da linguagem em
detrimento da sua função comunicativa, uma forma alternativa
de buscar compreender o que pela
linguagem comum já não é compreensível.
Régy representa no teatro a
mesma tradição que na literatura
francesa chegou a extremos com
Beckett e Blanchot. O problema é
que o mundo já não é o mesmo e,
ao insistir nessa mesma chave, ao
mesmo tempo em que resiste ao
embrutecimento das artes, o diretor corre o risco de transformar o
que era inovação e desvio em tique e afetação. A culpa obviamente não é de Régy e ele faz bem
em resistir à banalização. Mas é
esse mundo banalizado que já
não parece permitir nem mesmo
a resistência. Hoje ela já não tem
efeito de provocação. O efeito que
parecia poder ser atingido com
esse "distanciamento" da fala em
relação ao sentido, com essa fala
massacrada, esticada, desfigurada até dizer o que a linguagem
não consegue dizer na sua forma
coloquial, talvez já não faça nenhum sentido.
De qualquer jeito, a estranheza
da encenação ainda é capaz de
despertar pelo menos o espectador atento para a fragilidade dos
dualismos em que a sua compreensão das coisas está baseada.
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