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São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 2003

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BERNARDO CARVALHO

Manhã e noite

Num pequeno romance do norueguês Jon Fosse publicado neste ano na França, a morte começa com o nascimento. "Manhã e Noite" ("Morgon og Kveld", 2000) é dividido em duas partes: o nascimento de Johannes e sua morte. Na primeira parte, um jovem pai espera apreensivo o parto da mulher no quarto ao lado. Na segunda parte, o recém-nascido da primeira parte, agora velho e viúvo, encontra o fantasma de um amigo saudoso e descobre que também está morto, morreu naquela manhã.
Nascimento e morte se confundem. Com o nascimento, começam as preocupações do pai, e do leitor, que sente a morte à espreita, nas descrições de Fosse, na maneira como, concluído o parto, a parteira diz que tem que ir embora e aconselha o jovem casal a chamá-la no caso da menor irregularidade.
A consciência da morte começa com o nascimento. E enquanto o pai espera o desenrolar do parto, é na vida como percurso do nada ao nada que ele pensa. Na vida como morte, o que remete à peça de Jon Fosse recém-encenada em Paris, por Claude Régy, dentro da programação do Festival de Outono.
"Variações sobre a Morte" fala do nascimento e do suicídio de uma moça. A confusão entre nascimento e morte, nessa peça, vem do fato de o espectador já não conseguir distinguir entre o fim e o começo, o presente e o passado. O tempo é simultâneo. Cinco personagens se alternam e dialogam no palco, mas nem todos vivem no mesmo momento, uns são a lembrança ou a projeção dos outros. Há o casal jovem, começando a vida sem dinheiro, quando a mulher ainda está grávida da menina. Mas há também o casal, já velho e separado, depois da morte da filha. E há, ao mesmo tempo, a filha, que circula entre as expectativas do jovem casal e as lembranças dos pais velhos e desiludidos.
Régy sempre se interessou por novos dramaturgos. Foi ele quem revelou o teatro de Peter Handke e Botho Strauss aos franceses, nos anos 70. Sua montagem de "4.48 Psicose", da inglesa Sarah Kane, foi apresentada em fevereiro em São Paulo. "Variações sobre a Morte" é o seu terceiro trabalho com um texto desse autor norueguês nascido em 1959 e considerado um dos expoentes da nova dramaturgia européia.
A confusão entre nascimento e morte, a simultaneidade entre o passado e o presente está expressa na própria concepção do cenário da montagem francesa: um simples plano, ligeiramente inclinado, iluminado por uma luz dura e branca, que parece flutuar no vazio, suspenso no espaço escuro que o envolve. Tempo e espaço passam a ser a mesma coisa. O cenário é a materialização do tempo. Ou a sua interrupção.
Entre as palestras agendadas paralelamente à peça, houve a de um físico sobre as diversas possibilidades de compreensão do tempo. No texto do programa, Fosse diz compreender cada vez menos as formas como os homens tentam compreender as coisas (pelos conceitos, pela teoria) e que cada vez mais procura uma forma alternativa de compreensão (pela ficção, pela poesia), uma linguagem que seja algo em si antes de significar alguma coisa.
Logo no início da peça, a mãe velha fala de uma "ordem transfigurada" que só se deixará compreender quando "compreendermos o que compreender quer dizer". A menina, atraída por um homem que representa tanto o amor como a morte, diz que tem a impressão de conhecê-lo desde sempre: "O amor se parece com a morte". E os textos de Jon Fosse parecem querer nos dizer que vemos opostos em tudo, como uma forma capenga de tentar compreender o que é incompreensível, quando no fundo não há distinção entre a vida e a morte, o passado e o presente, o espaço e o tempo, a felicidade e a dor, a manhã e a noite.
Em boa parte da montagem de Régy, os atores são iluminados pelas costas. Eles evoluem como fantasmas ("estamos aqui o tempo todo e nunca estamos"), em câmera lenta, por esse plano suspenso no vazio, com os movimentos entrecortados como os dos bonecos da velha série de TV "Thunderbird". As falas também são entrecortadas, disfuncionais, uma marca registrada do diretor francês para fazer sobressair a linguagem em detrimento do sentido, o vazio da linguagem em detrimento da sua função comunicativa, uma forma alternativa de buscar compreender o que pela linguagem comum já não é compreensível.
Régy representa no teatro a mesma tradição que na literatura francesa chegou a extremos com Beckett e Blanchot. O problema é que o mundo já não é o mesmo e, ao insistir nessa mesma chave, ao mesmo tempo em que resiste ao embrutecimento das artes, o diretor corre o risco de transformar o que era inovação e desvio em tique e afetação. A culpa obviamente não é de Régy e ele faz bem em resistir à banalização. Mas é esse mundo banalizado que já não parece permitir nem mesmo a resistência. Hoje ela já não tem efeito de provocação. O efeito que parecia poder ser atingido com esse "distanciamento" da fala em relação ao sentido, com essa fala massacrada, esticada, desfigurada até dizer o que a linguagem não consegue dizer na sua forma coloquial, talvez já não faça nenhum sentido.
De qualquer jeito, a estranheza da encenação ainda é capaz de despertar pelo menos o espectador atento para a fragilidade dos dualismos em que a sua compreensão das coisas está baseada.


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