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Entretenimento compassivo
Com mais quatro anos de Bush pela frente, cultura começa a se curvar ao neoconservadorismo, e "Sob o Domínio do Mal", que estréia amanhã nos cinemas do Brasil, é uma das exceções
SÉRGIO DÁVILA
NA CALIFÓRNIA
Num país em que ser recipiente
de sexo oral (Bill Clinton quase
sofreu impeachment por isso) é
considerado mais grave do que
causar a morte de 15 mil civis por
uma mentira (George W. Bush,
reeleito mesmo não tendo falado
a verdade sobre a capacidade de o
Iraque sob governo de Saddam
Hussein produzir armas de destruição em massa), a cultura tende a seguir a direção do vento que
sopra mais forte.
E o vento que sopra mais forte
neste momento é o do conservadorismo, ou neoconservadorismo, como a academia rebatizou a
direita norte-americana, o "conservadorismo compassivo" de
George W. Bush.
Assim, os pontos zeros da minoria democrata, Nova York e
Califórnia, por excelência centros
produtores de cultura e da imagem do país no exterior, começam a se curvar à chamada "América profunda", que venceu nas
urnas. Não é por acaso que o filme
mais visto no primeiro final de semana pós-reeleição seja a ficção
científica de animação "Os Incríveis", em que super-heróis são
proibidos de usar seus poderes e
confinados pelos outros a uma vida medíocre -troque "super-heróis" por "superpotência" e "outros" por "comunidade internacional" e a alegoria se apresenta
mais completa.
Humor
A comédia chegou a US$ 71 milhões de bilheteria em três dias,
contra US$ 6,5 milhões da outra
grande estréia da semana (2.000
salas), a refilmagem "Alfie", com
Jude Law no papel-título, com a
história de um motorista libertário cujo principal objetivo na vida
é levar para a cama o maior número possível de mulheres.
"Pode ser o humor do país nesse
momento", disse Wayne Lellewellyn, presidente de distribuição
da Paramount, estúdio de "Alfie".
"Parece ser o resultado da eleição.
Talvez eles (o público, os eleitores) não queiram ver um cara que
sai transando por aí."
Na mosca. Segundo pesquisa de
boca-de-urna da Edison Media
Research/Mitofsky International
feita no dia 2 de novembro, 59%
dos que se declararam protestantes votaram em Bush (contra 40%
em Kerry); dos que declararam
freqüentar qualquer igreja pelo
menos uma vez por semana, 61%
votaram no republicano (contra
39% no democrata); grande parte
dos que votaram em Bush declarou "valores morais" como principal motivo.
No mesmo dia, a rede Fox
News, espécie de "Diário Oficial"
televisivo da Casa Branca, batia
todos os recordes de sua audiência e deixava seu principal concorrente, a CNN, no chinelo.
(Aliás, chega a ser constrangedor ver a "foxização" da CNN em
busca da audiência perdida; desde a implantação da Doutrina
Bush e desde que perdeu o primeiro lugar no pódio, a pioneira
emissora de notícias fundada nos
anos 80 por Ted Turner investe
em âncoras mais agressivos e
mesmo uma loira que, até dois
anos atrás era passiva e inerte, como Paula Zahn, parece querer
imitar a estrela da Fox, Bill
O'Reilly, nos trejeitos, nas perguntas rápidas e na voz alterada.)
Sean Penn explodido
Mas "Os Incríveis" e a Fox News
não estão sozinhos. Pouco antes
da eleição, a dupla de criadores da
série iconoclasta "South Park"
perdeu a objetividade da sátira e
partiu para a propaganda ao lançar seu "Team America - Detonando o Mundo", cujo intertítulo
original é "A Polícia do Mundo".
Todo feito com marionetes e
aparentemente uma gozação da
guerra ao terror de Bush, o longa
na verdade bate forte nos militantes de esquerda de Hollywood,
gente como os atores Sean Penn
(cujo boneco tem a cabeça explodida) e Tim Robbins e o diretor
Michael Moore (de "Fahrenheit 11
de Setembro").
"O filme é sobre não querer esse
poder, essa culpa ou essa responsabilidade", disseram os autores,
Trey Parker e Matt Stone. "Eu
acho que é assim que os norte-americanos se sentem sobre sermos a polícia do mundo, e isso
não tem nada a ver com a eleição.
É um questionamento tipicamente americano com o qual todos
nós temos de lidar e teremos de lidar cada vez mais."
Nesse contexto, "Sob o Domínio do Mal" (The Manchurian
Candidate), que estréia amanhã
em São Paulo, é uma exceção. Refilmagem do título homônimo de
1962 baseado no romance de Richard Condon, a obra deixou de
ser um manifesto anticomunista
para virar um ataque direto à administração Bush.
O autor da transformação é Jonathan Demme, democrata assumido, diretor de sucessos como
"O Silêncio dos Inocentes" (1991),
que lhe valeu o Oscar do ano seguinte, e "Filadélfia" (1993).
No filme, um herdeiro que pode
vir a ser o próximo ocupante da
Casa Branca e faz parte de família
de políticos tradicionais na verdade está defendendo os interesses
de uma grande corporação multinacional; enquanto isso, o governo joga com o medo do terrorismo para manipular a opinião pública e desacreditar como traidores os que ousam vir a público falar sobre essa manobra.
As semelhanças com George
Bush, pai e filho, o vice-presidente
Dick Cheney, a ligação deste com
a Halliburton e o Ato Patriota não
são meras coincidências. Assim
como foi calculado o dia de estréia
do filme, na sexta seguinte ao fim
da convenção do Partido Democrata, que referendou o candidato
John Kerry.
O filme custou US$ 80 milhões.
Passados três meses, Bush se reelegeu, seu oponente voltou ao
Congresso, os democratas procuram o eixo e "Sob o Domínio do
Mal" ainda não se pagou.
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