São Paulo, quinta-feira, 11 de novembro de 2004

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Entretenimento compassivo

Com mais quatro anos de Bush pela frente, cultura começa a se curvar ao neoconservadorismo, e "Sob o Domínio do Mal", que estréia amanhã nos cinemas do Brasil, é uma das exceções

SÉRGIO DÁVILA
NA CALIFÓRNIA

Num país em que ser recipiente de sexo oral (Bill Clinton quase sofreu impeachment por isso) é considerado mais grave do que causar a morte de 15 mil civis por uma mentira (George W. Bush, reeleito mesmo não tendo falado a verdade sobre a capacidade de o Iraque sob governo de Saddam Hussein produzir armas de destruição em massa), a cultura tende a seguir a direção do vento que sopra mais forte.
E o vento que sopra mais forte neste momento é o do conservadorismo, ou neoconservadorismo, como a academia rebatizou a direita norte-americana, o "conservadorismo compassivo" de George W. Bush.
Assim, os pontos zeros da minoria democrata, Nova York e Califórnia, por excelência centros produtores de cultura e da imagem do país no exterior, começam a se curvar à chamada "América profunda", que venceu nas urnas. Não é por acaso que o filme mais visto no primeiro final de semana pós-reeleição seja a ficção científica de animação "Os Incríveis", em que super-heróis são proibidos de usar seus poderes e confinados pelos outros a uma vida medíocre -troque "super-heróis" por "superpotência" e "outros" por "comunidade internacional" e a alegoria se apresenta mais completa.

Humor
A comédia chegou a US$ 71 milhões de bilheteria em três dias, contra US$ 6,5 milhões da outra grande estréia da semana (2.000 salas), a refilmagem "Alfie", com Jude Law no papel-título, com a história de um motorista libertário cujo principal objetivo na vida é levar para a cama o maior número possível de mulheres.
"Pode ser o humor do país nesse momento", disse Wayne Lellewellyn, presidente de distribuição da Paramount, estúdio de "Alfie". "Parece ser o resultado da eleição. Talvez eles (o público, os eleitores) não queiram ver um cara que sai transando por aí."
Na mosca. Segundo pesquisa de boca-de-urna da Edison Media Research/Mitofsky International feita no dia 2 de novembro, 59% dos que se declararam protestantes votaram em Bush (contra 40% em Kerry); dos que declararam freqüentar qualquer igreja pelo menos uma vez por semana, 61% votaram no republicano (contra 39% no democrata); grande parte dos que votaram em Bush declarou "valores morais" como principal motivo.
No mesmo dia, a rede Fox News, espécie de "Diário Oficial" televisivo da Casa Branca, batia todos os recordes de sua audiência e deixava seu principal concorrente, a CNN, no chinelo.
(Aliás, chega a ser constrangedor ver a "foxização" da CNN em busca da audiência perdida; desde a implantação da Doutrina Bush e desde que perdeu o primeiro lugar no pódio, a pioneira emissora de notícias fundada nos anos 80 por Ted Turner investe em âncoras mais agressivos e mesmo uma loira que, até dois anos atrás era passiva e inerte, como Paula Zahn, parece querer imitar a estrela da Fox, Bill O'Reilly, nos trejeitos, nas perguntas rápidas e na voz alterada.)

Sean Penn explodido
Mas "Os Incríveis" e a Fox News não estão sozinhos. Pouco antes da eleição, a dupla de criadores da série iconoclasta "South Park" perdeu a objetividade da sátira e partiu para a propaganda ao lançar seu "Team America - Detonando o Mundo", cujo intertítulo original é "A Polícia do Mundo".
Todo feito com marionetes e aparentemente uma gozação da guerra ao terror de Bush, o longa na verdade bate forte nos militantes de esquerda de Hollywood, gente como os atores Sean Penn (cujo boneco tem a cabeça explodida) e Tim Robbins e o diretor Michael Moore (de "Fahrenheit 11 de Setembro").
"O filme é sobre não querer esse poder, essa culpa ou essa responsabilidade", disseram os autores, Trey Parker e Matt Stone. "Eu acho que é assim que os norte-americanos se sentem sobre sermos a polícia do mundo, e isso não tem nada a ver com a eleição. É um questionamento tipicamente americano com o qual todos nós temos de lidar e teremos de lidar cada vez mais."
Nesse contexto, "Sob o Domínio do Mal" (The Manchurian Candidate), que estréia amanhã em São Paulo, é uma exceção. Refilmagem do título homônimo de 1962 baseado no romance de Richard Condon, a obra deixou de ser um manifesto anticomunista para virar um ataque direto à administração Bush.
O autor da transformação é Jonathan Demme, democrata assumido, diretor de sucessos como "O Silêncio dos Inocentes" (1991), que lhe valeu o Oscar do ano seguinte, e "Filadélfia" (1993).
No filme, um herdeiro que pode vir a ser o próximo ocupante da Casa Branca e faz parte de família de políticos tradicionais na verdade está defendendo os interesses de uma grande corporação multinacional; enquanto isso, o governo joga com o medo do terrorismo para manipular a opinião pública e desacreditar como traidores os que ousam vir a público falar sobre essa manobra.
As semelhanças com George Bush, pai e filho, o vice-presidente Dick Cheney, a ligação deste com a Halliburton e o Ato Patriota não são meras coincidências. Assim como foi calculado o dia de estréia do filme, na sexta seguinte ao fim da convenção do Partido Democrata, que referendou o candidato John Kerry.
O filme custou US$ 80 milhões. Passados três meses, Bush se reelegeu, seu oponente voltou ao Congresso, os democratas procuram o eixo e "Sob o Domínio do Mal" ainda não se pagou.


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