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CONTARDO CALLIGARIS
Sozinho ou acompanhado?
Durante minha carreira
escolar, nunca fiz um trabalho em grupo. Às vezes, a gente se
reunia e juntava as forças para
estudar, preparar um teste ou entender uma aula. Mas os deveres
de casa e os exames (salvo cola
eventual) eram absolutamente
individuais. Cada um fazia o seu
e ganhava sua nota.
Houve uma exceção: 1968. Na
Universidade de Milão, por iniciativa de professores "progressistas" ou por pressão de estudantes
mais "progressistas" ainda, surgiu a moda do exame de grupo.
Lembro-me de um exame de "história das doutrinas políticas", que
passamos em grupo de cinco. Ganhamos um 27. O máximo era 30,
mas, naquele ano, 27 era a nota
mínima que qualquer professor
daria se não quisesse ser vítima
de boicote político. De fato, não
sabíamos bulhufas, mas achávamos que o tempo passado juntos
nas assembléias do movimento
estudantil valia tanto quanto a
leitura de Montesquieu, Rousseau, Hobbes e Locke.
Depois disso, só reencontrei o
"trabalho em grupo" no fim dos
anos 80, quando meus filhos entraram no primário. Descobri então que a provocação política de
minha adolescência tinha engendrado uma doutrina pedagógica.
De vez em quando, eu manifestava alguma perplexidade com as
orientadoras educacionais: "Mas
eles não têm nem o tempo de elaborar, de pensar sozinhos".
Resposta: "Aprender a trabalhar em grupo é tão importante
quanto a matéria. Não estamos
só transmitindo conteúdos, estamos educando as crianças para
que adquiram espírito de equipe,
capacidade de liderança, confiança no outro, enfim, as qualidades
intersubjetivas que preparam para a vida adulta e o mundo do
trabalho".
As orientadoras tinham razão.
Basta considerar a quantidade de
"workshops" de dinâmica de grupo promovidos hoje pelos departamentos de recursos humanos
das empresas. A arte de relacionar-se parece profissionalmente
mais importante do que a competência específica exigida pelo trabalho de cada um.
Pensei nessa mudança pedagógica ao ler um livro recente:
"Party of One, the Loner's Manifesto" (Grupo de Um, o Manifesto
do Solitário), de Anneli Rufus. É
um ensaio engraçado e pertinente
em defesa da solidão.
Rufus começa contando a história de Eve, bolsista da Fundação
Fulbright, em Gana. Eve era de
temperamento solitário e, obviamente, numa sociedade ainda
tradicional, em que a comunidade é uma valor mais importante
do que o indivíduo, seus gostos
anti-sociais eram considerados
uma enfermidade: em Gana, as
pessoas "pareciam considerar
uma forma de perversão se uma
pessoa não tivesse amigos, vivesse
sozinha ou circulasse sozinha pelas ruas. Era como se você fosse
uma pessoa má, um marginal,
um possuído pelo demônio".
Pergunta: será que para nós a
coisa é muito diferente? Embora,
em nossa cultura, o indivíduo
conte mais que a comunidade,
parece que, entre nós também, o
solitário se tornou uma figura patológica.
Primeiro, Rufus descreve as
aventuras tragicômicas da vida
solitária (em destaque: jantar sozinho num restaurante sob os
olhares de comiseração das mesas
vizinhas).
Logo, ela reconstrói a história
da figura do solitário na cultura
popular das últimas décadas. No
bangue-bangue dos anos 50, os
solitários eram nossos heróis (veja
ou reveja "Matar ou Morrer" ou
"Os Brutos Também Amam"). O
caubói, aliás, era o protótipo do
solitário errante, enigmático e sedutor: entre 50 e 70, um deles promoveu "sua" marca de cigarros
até torná-la a mais vendida do
mundo.
A partir dos anos 70, a solidão
começou a mexer com a cabeça do
herói solitário, que se tornou estranho e perigoso ("Taxi Driver")
ou inquietante e um pouco asqueroso ("Retratos de uma Obsessão").
"Solitário" é hoje a suposição
automática (e indevida) da imprensa americana na hora de definir os autores de crimes em série
ou de assassinatos múltiplos nas
escolas. O solitário é maluco; portanto os malucos devem ser solitários.
Enfim, um capítulo do livro
examina a recente transformação
do temperamento solitário em
patologia: "Como os não solitários são muito mais numerosos do
que a gente, sua receita para a
saúde mental é proposta e vale como boa medicina". Conclusão: os
solitários sofreriam de fobia social, personalidade esquizóide,
depressão ou autismo. Rufus nota
que o diagnóstico de síndrome de
Asperger (forma leve de autismo,
que implica uma dificuldade em
compreender as emoções dos outros e em se relacionar) popularizou-se logo a partir dos anos 90,
quando o solitário, na cultura de
massa, passou definitivamente de
herói para louco e deseixado.
Curioso: nossa cultura, que valoriza os indivíduos acima da comunidade, considera cada vez
mais que a capacidade de se relacionar com os outros é um talento
supremo e uma prova de boa saúde mental.
O paradoxo é apenas aparente:
a sociabilidade se torna uma arte
e uma obrigação na medida em
que, para nós, ela não é nada natural, mas deve ser aprendida.
Alguém lembrará que, de qualquer forma, sem os outros não somos quase nada. Pois é, os solitários são aqueles que encaram esse
incômodo vazio.
@ - ccalligari@uol.com.br
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