São Paulo, sexta-feira, 11 de novembro de 2005

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"MARCAS DA VIOLÊNCIA"

Olhar de Cronenberg evita julgamento

CRÍTICO DA FOLHA

Se não fosse pela precisão, de início não pareceria um filme de David Cronenberg. Aqueles sujeitos sinistros, à frente de um motel, o aspecto interiorano, a maneira de um deles dizer que "vai acertar a conta" -tudo parece um apanhado de lugares-comuns. Uma impressão que se reforça quando vemos o que significava, para ele, "acertar a conta".
Cronenberg começa com uma tocada de Tarantino. Mas sem cinismo. E ninguém pensará em cinismo quando a pequena Sarah Stall solta, no meio da noite, seu grito lancinante. No pesadelo, um monstro aparece.
Agora estamos na família Stall. Stall? Soa como Stahl, o grande mestre dos melodramas. E temos lá, justamente, um desses pontos fortes do melodrama: a descrição da vida nas pequenas cidades. Interior de Indiana. Um buraco pertinho do Canadá, país do cineasta.
Tom Stall é um prosaico dono de lanchonete. Entretém seus clientes com estudada gentileza. Presume-se que tem de negociar, às vezes, com bêbados. Não demora muito, os criminosos do início aparecem na cidade. Estão sem dinheiro e vão roubar o restaurante. Decisão equivocada, já que Tom reage com agilidade aos criminosos e acaba com ambos.
Temos, então, toda a história contada e um herói local desses que a mídia aprecia: um homem comum que enfrenta e derrota as forças do mal. Mas até aí foram uns 15 minutos de filme. E o resto? Bem, estamos no planeta Cronenberg: agora é que a coisa começa.
O que deveria ser o retorno à paz transforma-se num inferno familiar. Um carro negro aparece. Nele, um homem sem um olho e seus capangas. Esse homem chama Tom de Joey. E a paz chega ao fim sem que se dê um tiro.
Pois quem é Tom? Tom ou Joey? Uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde? Um homem com um outro dentro de si? O que é a identidade, enfim, se é que existe?
Bem, lá está Edie, a mulher de Tom, que agora desconfia, se ressente e até odeia o marido (mas que fabulosa transa, aquela cheia de ódio e paixão que eles têm na escada. Tarantino não tem dessas coisas). E o filho exemplar, Jack, que de repente mostra outra face.
Em poucos minutos, tudo se transforma. E daí para o fim se transformará muito mais. Não é um olhar muito complacente o que Cronenberg lança em direção aos EUA. Ele é um penetra no Paraíso, quase sempre se recusou a ser produzido por Hollywood.
Mas é um olhar diferente do de Lars von Trier, por exemplo. Cronenberg não julga o caráter nem a cultura americanos. Antes, parece ver ali um povo saído das histórias em quadrinhos, mais próximo de Stan Lee e do almanaque Marvel que de um Edgar Allan Poe. Mas não se importa muito com isso: dirige seu filme com a alegria descuidada das HQs, pouquíssimo preocupado de prestar contas a quem quer que seja. Cronenberg trabalha desta vez com uma alegria que lembra seus primeiros filmes. Faz um cinema que já não existe mais para um público que, talvez, também já não exista mais. (IA)

Marcas da Violência
A History of Violence
    
Direção: David Cronenberg
Produção: EUA, 2005
Com: Viggo Mortensen, Maria Bello
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Central Plaza, Paulista e circuito


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