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CARLOS HEITOR CONY
Jean-Paul Sartre e o colesterol
"Depois de Sartre, quem?"
foi a manchete de um jornal
francês para apresentar os possíveis candidatos a ocupar o lugar
do autor de "A Náusea", morto
em 1980 e cujo centenário de nascimento está sendo comemorado
este ano. A relação apresentada
pelo "Le Matin de Paris" incluía
todos os intelectuais que ameaçavam conquistar a "pole position"
que, de um modo ou outro, pertencera por formação e linhagem
à cultura francesa. Foram citados, entre outros, mas sem muita
convicção, Bourdieu, Garaudy,
Derrida, Lévy-Strauss, Merleau-Ponty, Foucault, Debray etc.
Nenhum deles deu para a largada, apesar do valor pontual ou
efêmero de cada um deles. Pouco
depois, na autofagia típica dos intelectuais, começou a onda que
ainda existe na França, considerando Sartre um escritor datado,
sem qualquer importância, indo
a apreciação crítica não apenas
ao escritor mas ao homem que foi
Jean-Paul Sartre: cinco anos após
a sua morte, em Thiviers, cidade
na qual passou a infância, fizeram-lhe uma modesta homenagem que foi embaciada pela manchete de um jornal: "Não se homenageia um crápula como esse".
Intelectual emblemático de um
século complicado como o anterior, Sartre foi herói e vilão sucessivamente e, às vezes, simultaneamente. No velho maniqueísmo
das esquerdas, haveria um "Sartre bom" e um "Sartre mau",
mais ou menos como o colesterol,
que pode ser bom ou mau de
acordo com as contingências de
cada organismo. Exemplo: o Sartre que se "enganara" em Berlim,
quando, em 1933, pareceu abandonar a escola do pensamento
tradicional francês e se deslumbrou com a fenomenologia de
Husserl e o existencialismo de
Heidegger -este último, um admirador intermitente do regime
nazista.
O Sartre das causas perdidas, de
sua atração e repulsa pela União
Soviética, de sua conflituosa relação com o Partido Comunista
Francês, de seu rompimento com
Albert Camus na questão da Argélia, até mesmo o seu entusiasmo por Fidel Castro e Mao Tsé-tung, sua admiração pelos escritores norte-americanos, notadamente por William Faulkner,
afirmando que os franceses não
sabiam escrever romances -e,
apesar disso, no final de sua vida,
escrevendo as 2.000 e tantas páginas sobre Flaubert. Como entender tudo isso num homem que viveu 75 anos, mas pareceu ter vivido o espaço dos séculos 19 e 20 ao
mesmo tempo?
Desprezando a classificação primária do bom e do mau, há em
Sartre um poliedro que só pode
ser julgado por um estranho às
miudezas e ressentimentos do
universo intelectual. Quando largou todas as conveniências do
burguês que fora durante os anos
30, quando desdenhou a glória do
herói, a partir de 1945, logo o
após-guerra, Sartre teve a melhor
definição de sua vida e obra
quando De Gaulle, em 1968, recusou tomar uma medida violenta
contra ele: "Não se pode prender
Voltaire".
O general falou tudo. Como em
Voltaire, havia em Sartre o bom e
o mau misturado quase que em
doses iguais, mas de tal forma que
a síntese produzia um gigante
inarredável diante da história.
Foi assim que Voltaire foi parar
no Panthéon, não por ter escrito
"Candide", mas por ter defendido
Calas, tal como Zola, que defendeu Dreyfuss e, após ser perseguido e ameaçado de morte, foi parar no mesmo Panthéon.
Sartre está sepultado no cemitério de Montparnasse, logo à entrada, à direita, num túmulo modesto, onde, seis anos depois, foi
enterrada Simone de Beauvoir,
mais companheira do que mulher, embora tenha sido, às vezes,
as duas coisas.
Fora da França, onde hoje é renegado e, pior, é esquecido, ele
continua como a referência principal da cultura e da inteligência
não apenas de seu país natal, mas
de toda a Europa e, mais ainda,
de todo o século 20. Contradições
à parte, ele pertence à linhagem
dos "polêmicos", como Sócrates,
Voltaire, Hugo, Zola, condenados
por suas atitudes que pareciam, a
seus contemporâneos, confusas e
até mesmo criminosas.
Muito comum, sobretudo no arsenal crítico da esquerda, julgar o
artista pela sua fidelidade ou coerência políticas, que, no fundo,
nada mais são do que um tipo de
oportunismo primário. Basta
lembrar que, após a ocupação da
França pela Alemanha e antes da
campanha de Hitler contra a
União Soviética, e enquanto durou a lua de mel dos dois regimes
totalitários, os nazistas e as autoridades de Vichy permitiram que
o órgão oficial do Partido Comunista Francês, "L"Humanité" voltasse a circular, embora por pouco tempo.
Direita e esquerda o desprezaram quando subiu num caixote
de madeira e fez comício aos operários da Renault. Ao recusar o
prêmio Nobel, em 1954, aos 59
anos, de certa forma ele voltou a
ser o Sartre dos anos 30, quando a
política não o interessava e ele só
tinha entre as mãos a náusea pela
condição humana, da qual foi intérprete e vítima.
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