São Paulo, quarta, 11 de novembro de 1998

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CRÍTICA
Há ciranda e eletrônica no céu nacional de 1998

da Reportagem Local

Talvez nem seja proposital, mas "Samba pra Burro" é um disco de desconstrução. Tal impressão é especialmente evidente na canção que abre e encerra o CD, "Bob".
A estrutura é de uma bossinha inofensiva, tipo "Ela É Carioca", "Garota de Ipanema". Mas Bebel Gilberto, nascida no olho do furacão do movimento bossa, de pai ninguém menos que João Gilberto, desmonta em dez minutos de vocais alucinados preceitos sedimentados ao longo de 40 anos.
O que dá para entender, quando Bebel repete e repete, feito louca, a palavra "Copacabana", é que esse papo de bossa, barco, pato, praia e peixe já deu o que tinha que dar. No fundo está o drum'n' bass, que, certo, também é filho da bossa, mas nem por isso é preciso que se tenha voz mansa, violão sincopado e joelho para ser alguém na selva da MPB.
Por isso o CD é ainda mais ousado no que diz respeito ao mangue beat, movimento no qual Otto foi fermentado. Aqui, o mangue também está desconstruído.
Pois o drum'n'bass -que, no fundo, é a percussão atávica de Otto manipulada pelas mãos maliciosas do produtor Apollo 9- toma conta do CD, isolando e ocultando mais elementos de MPB.
Assim, é difícil de cara perceber que "Ciranda de Maluco" é um frevo muito do matreiro, que "O Celular de Naná" é uma emocionante balada ritual brasileira, que "Café Preto" é samba de malandro.
Fica meio obscurecido também um dom social que é caro ao mangue e à MPB, presente em "TV a Cabo", crítica ao "parabolismo" indiscriminado ("acabo de comprar uma TV a cabo/ acabo de entrar na solidão a cabo").
Resulta CD iconoclasta, de ruptura com várias instâncias de passado. Mas uma ressalva deve ser feita à não pouca ousadia em obra tão jovem: tecnicamente, tanto rompimento pode se dar à custa de forte interferência de produção.
Talvez Otto por ele mesmo não estivesse tão ressecado atrás da muralha interventora do drum'n'bass. Isso -como seu discurso caótico- é coisa a ser modulada e amaciada nos próximos trabalhos. Mas, enfim, um disco de estréia ousado veio à luz no triste ano brasileiro de 1998. Os obscurantistas vão dizer que não é para tocar em rádio -pobres obscurantistas. Pois há frevo, ciranda e eletrônica no céu nacional. (PAS)
²
Disco: Samba pra Burro Artista: Otto Lançamento: Trama Quanto: R$ 18, em média


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