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LIVRO - LANÇAMENTOS
A Bíblia compartida: uma audácia atraente
MARIO SERGIO CORTELLA
especial para a Folha
Qual teria sido o destino de Gutenberg se, em meados do século
15, sua experiência mais famosa
com o tipo móvel na imprensa resultasse na publicação em separado de cada um dos livros da Bíblia? E se cada uma dessas "separatas" tivesse, além de tudo, uma
introdução (à guisa de prefácio)
elaborada por alguém eventualmente leigo, ateu ou não-praticante e que fizesse sua interpretação subjetiva e particular daquele
texto religioso específico?
E se o impressor alemão decidisse eleger somente alguns livros
bíblicos, por considerá-los os
mais importantes? É provável que
essa "atitude" editorial fosse encarada como motivo de ofensa e
heresia a ser punida com a morte.
Mais de cinco séculos depois,
em alguns ambientes nacionais
com maior tolerância, permite-se
a prática dessa audácia: desmembrar a Bíblia em pequenos e individualizados livros, com características assemelhadas às que hipoteticamente condenariam Gutenberg. Não é, claro, um projeto
desprovido de interesse mercadológico; porém essa intenção livreira vai ao encontro da sedução hoje novamente exercida pela espiritualidade e do reconhecimento
do vigor e da beleza literária da Bíblia (sem negar nela o devido respeito à sacralidade e indivisibilidade professadas por alguns credos).
No final de 1998, a britânica Canongate Press, instigada por um
de seus editores (que não conseguira presentear a namorada com
apenas um dos livros que compõem a Bíblia), decidiu lançar
uma coletânea de livros de bolso,
com custo baixo e prefaciados por
personalidades de campos diversos e não necessariamente atadas
ao universo religioso.
Escolheu 12 livros (seis do Antigo e seis do Novo Testamento) de
uma das versões da Bíblia, aquela
mais difundida no âmbito do cristianismo reformado, conhecida
como a do "Rei Jaime" (monarca
anglicano do início do século 17
que a autorizou), e que diverge
sobre a inclusão de alguns textos
aceitos pelo catolicismo romano.
Foi um sucesso editorial tão
grande que já estão preparando a
publicação em língua inglesa de
outros 6 livros dentro da mesma
coletânea.
Agora, um ano depois, a editora
Objetiva está lançando em português uma coleção similar (preço
acessível e formato adequado),
chamada "Livros da Bíblia". Adquiriu os direitos sobre a concepção e, também, alguns prefácios;
entretanto, mudou parte dos textos, de modo a torná-los mais
próximos à nossa realidade, permanecendo, felizmente, o inédito
e provocador recurso às reflexões
introdutórias de alguns destacados produtores culturais contemporâneos.
A alteração mais significativa é a
utilização (para as escrituras religiosas) da apropriada versão da
Bíblia, lançada em 1982 pela editora católica Vozes; contudo, a
Objetiva, mesmo mantendo a seleção dos livros feita na Grã-Bretanha, dividiu o lançamento dos
volumes em dois blocos de seis
obras (um agora e outro no próximo ano), substituindo no primeiro bloco três prefaciadores originais por pensadores brasileiros.
Assim, já estão à disposição para nosso deleite e admiração, os
seguintes livros (e correspondentes introduções de estrangeiros):
"Êxodo", e o premiado romancista israelense David Grossman;
"Eclesiastes", e a mundialmente
reconhecida escritora inglesa
(nascida na Pérsia) Doris Lessing;
"Evangelho Segundo São Marcos", e o músico de blues e roteirista australiano Nick Cave. Do
cenário brasileiro temos: "Evangelho Segundo São Lucas", e o
dramaturgo e roteirista mineiro
Alcione Araújo; "Evangelho Segundo São João", e o estupendo
jornalista e escritor carioca Carlos
Heitor Cony; "Coríntios" (duas
cartas de São Paulo), e o ensaísta e
teólogo catarinense Leonardo
Boff.
O conteúdo dos livros bíblicos é
mais conhecido; no entanto, a
qualidade e os desafios à obviedade contidos nos prefácios, eleva
nossa capacidade de indagar, admirar e, inclusive, meditar melhor
sobre os textos religiosos.
Esta é uma coleção que, sustentando seu ineditismo, não se
aproxima de forma insolente e
perigosa do que poderia ser considerado uma "profanação" dos
valores e crenças de muitos. Afinal, a Bíblia, ainda que adotada
em versões distintas (no todo ou
em partes), é fonte de sacralidade
para mais da metade da humanidade atual, apoiando diversamente as convicções do judaísmo,
do cristianismo e do islamismo.
Os escritos bíblicos são, porém,
uma referência cultural que ultrapassa a religiosidade institucionalizada, dado que penetram o âmbito das inquietações humanas e
dos desejos de sentido para a existência. Por isso, todos (crentes ou
não) podem deles fruir e neles repousar.
Avaliação:
Livro: coleção Os Livros da Bíblia
Introdução: David Grossman (Êxodo),
Doris Lessing (Eclesiastes), Nick Cave
(Evangelho Segundo São Marcos),
Alcione Araújo (Evangelho Segundo São
Lucas), Carlos Heitor Cony (Evangelho
Segundo São João) e Leonardo Boff
(Coríntios)
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 12, cada livro (em média)
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