São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


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LIVRO - LANÇAMENTOS
A Bíblia compartida: uma audácia atraente

MARIO SERGIO CORTELLA
especial para a Folha


Qual teria sido o destino de Gutenberg se, em meados do século 15, sua experiência mais famosa com o tipo móvel na imprensa resultasse na publicação em separado de cada um dos livros da Bíblia? E se cada uma dessas "separatas" tivesse, além de tudo, uma introdução (à guisa de prefácio) elaborada por alguém eventualmente leigo, ateu ou não-praticante e que fizesse sua interpretação subjetiva e particular daquele texto religioso específico?
E se o impressor alemão decidisse eleger somente alguns livros bíblicos, por considerá-los os mais importantes? É provável que essa "atitude" editorial fosse encarada como motivo de ofensa e heresia a ser punida com a morte.
Mais de cinco séculos depois, em alguns ambientes nacionais com maior tolerância, permite-se a prática dessa audácia: desmembrar a Bíblia em pequenos e individualizados livros, com características assemelhadas às que hipoteticamente condenariam Gutenberg. Não é, claro, um projeto desprovido de interesse mercadológico; porém essa intenção livreira vai ao encontro da sedução hoje novamente exercida pela espiritualidade e do reconhecimento do vigor e da beleza literária da Bíblia (sem negar nela o devido respeito à sacralidade e indivisibilidade professadas por alguns credos).
No final de 1998, a britânica Canongate Press, instigada por um de seus editores (que não conseguira presentear a namorada com apenas um dos livros que compõem a Bíblia), decidiu lançar uma coletânea de livros de bolso, com custo baixo e prefaciados por personalidades de campos diversos e não necessariamente atadas ao universo religioso.
Escolheu 12 livros (seis do Antigo e seis do Novo Testamento) de uma das versões da Bíblia, aquela mais difundida no âmbito do cristianismo reformado, conhecida como a do "Rei Jaime" (monarca anglicano do início do século 17 que a autorizou), e que diverge sobre a inclusão de alguns textos aceitos pelo catolicismo romano.
Foi um sucesso editorial tão grande que já estão preparando a publicação em língua inglesa de outros 6 livros dentro da mesma coletânea.
Agora, um ano depois, a editora Objetiva está lançando em português uma coleção similar (preço acessível e formato adequado), chamada "Livros da Bíblia". Adquiriu os direitos sobre a concepção e, também, alguns prefácios; entretanto, mudou parte dos textos, de modo a torná-los mais próximos à nossa realidade, permanecendo, felizmente, o inédito e provocador recurso às reflexões introdutórias de alguns destacados produtores culturais contemporâneos.
A alteração mais significativa é a utilização (para as escrituras religiosas) da apropriada versão da Bíblia, lançada em 1982 pela editora católica Vozes; contudo, a Objetiva, mesmo mantendo a seleção dos livros feita na Grã-Bretanha, dividiu o lançamento dos volumes em dois blocos de seis obras (um agora e outro no próximo ano), substituindo no primeiro bloco três prefaciadores originais por pensadores brasileiros.
Assim, já estão à disposição para nosso deleite e admiração, os seguintes livros (e correspondentes introduções de estrangeiros): "Êxodo", e o premiado romancista israelense David Grossman; "Eclesiastes", e a mundialmente reconhecida escritora inglesa (nascida na Pérsia) Doris Lessing; "Evangelho Segundo São Marcos", e o músico de blues e roteirista australiano Nick Cave. Do cenário brasileiro temos: "Evangelho Segundo São Lucas", e o dramaturgo e roteirista mineiro Alcione Araújo; "Evangelho Segundo São João", e o estupendo jornalista e escritor carioca Carlos Heitor Cony; "Coríntios" (duas cartas de São Paulo), e o ensaísta e teólogo catarinense Leonardo Boff.
O conteúdo dos livros bíblicos é mais conhecido; no entanto, a qualidade e os desafios à obviedade contidos nos prefácios, eleva nossa capacidade de indagar, admirar e, inclusive, meditar melhor sobre os textos religiosos.
Esta é uma coleção que, sustentando seu ineditismo, não se aproxima de forma insolente e perigosa do que poderia ser considerado uma "profanação" dos valores e crenças de muitos. Afinal, a Bíblia, ainda que adotada em versões distintas (no todo ou em partes), é fonte de sacralidade para mais da metade da humanidade atual, apoiando diversamente as convicções do judaísmo, do cristianismo e do islamismo.
Os escritos bíblicos são, porém, uma referência cultural que ultrapassa a religiosidade institucionalizada, dado que penetram o âmbito das inquietações humanas e dos desejos de sentido para a existência. Por isso, todos (crentes ou não) podem deles fruir e neles repousar.


Avaliação:    

Livro: coleção Os Livros da Bíblia Introdução: David Grossman (Êxodo), Doris Lessing (Eclesiastes), Nick Cave (Evangelho Segundo São Marcos), Alcione Araújo (Evangelho Segundo São Lucas), Carlos Heitor Cony (Evangelho Segundo São João) e Leonardo Boff (Coríntios) Editora: Objetiva Quanto: R$ 12, cada livro (em média)

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