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WALTER SALLES
O crime de Mônaco, Hitchcock e Orson Welles
O culpado era o mordomo. Ou
quase. A tragédia de Mônaco ganhou as páginas de jornais e revistas do mundo inteiro. Até aí, nada de inesperado. O caso funde as
páginas policiais com a revista
"Hola" e seus derivados nacionais
-tudo aquilo que se procura vender aos desavisados hoje em dia.
"Pulp fiction."
Mas há algo talvez mais surpreendente neste crime ainda mal
explicado. É difícil, por exemplo,
não se impressionar com o número de versões do caso adiantados
como fatos que teriam realmente
acontecido. Os desenhos narrando a entrada dos dois assassinos
hipotéticos, mostrados em vários
canais de televisão e publicados
pela imprensa mundial, reforçaram essa impressão.
Imagens, mesmo desenhadas
toscamente, dão substância aos
fatos, inscrevem-se na memória
das pessoas. Vendo os contornos
dos dois homens mascarados, temos a estranha sensação de que
eles efetivamente entraram naquele apartamento.
Há uma característica nesse caso que o aproxima dos filmes em
que o ponto de vista é o do assassino. No crime de Mônaco, a narrativa foi conduzida pelo personagem cuja ação deflagrou a tragédia -o enfermeiro. Como foi ele
que determinou o desenvolvimento da trama, acabou embaralhando a história, adulterando os fatos
para não ser descoberto.
Hitchcock usou do mesmo expediente em "Pânico nos Bastidores", filme que dirigiu em 1950,
com Marlene Dietrich, Jane
Wyman e Richard Todd. A trama
envolve uma jovem estudante de
teatro (Wyman) que procura inocentar o namorado (Todd) de um
crime que ele diz não ter cometido. No meio da trama, Todd conta para a estudante a sua própria
versão dos acontecimentos, que
passa a ser vista em flashback. As
imagens projetadas confirmam
aquilo que Todd diz e acabam,
por um momento, inocentando-o
de um crime que realmente ele cometeu.
No excelente livro em que dialoga com François Truffaut, Hitchcock faz um "mea culpa" em relação a "Pânico nos Bastidores".
"Mostrei nessa história algo que
jamais deveria ter filmado: um
"flashback" que era uma mentira".
Truffaut concorda. Personagens
cinematográficos mentem o tempo inteiro, como na vida real, mas
não se deve legitimar essas mentiras traduzindo-as em imagens,
dizia ele.
Voltando ao enfermeiro de
plantão. Enquanto sua versão se
sustentava, quantas vezes a máfia
russa ou extremistas árabes não
foram citados como prováveis responsáveis pelo crime? Percebe-se
aí como é às vezes estreita a distância entre um fato e suas versões. O problema talvez seja ainda
mais embaixo, diretamente ligado à questão do que é aceito, ou
não, como "verdade".
Ninguém mostrou isso de forma
tão genial quanto Orson Welles,
num filme que mistura intencionalmente ficção, material documental e falsas reportagens, intitulado "F for Fake" -traduzido
no Brasil por "Verdades e Mentiras". Welles fez o filme em 1973,
quando já tinha vivido várias vidas. Em 1941, havia reinventado o
cinema com "Cidadão Kane".
Tinha feito adaptações soberbas
de Shakespeare e Kafka. Mas
também tinha tido sérios conflitos
com os estúdios hollywoodianos,
deixando filmes inacabados
-entre eles, "É Tudo Verdade",
filmado no início dos anos 40 no
Brasil. Havia sido considerado
um gênio, mas também um manipulador, um falsário.
Não era para menos. Desde
criança, Welles inventou a sua
própria história. Criou fatos da
sua infância que nunca existiram.
Inventou que tinha sido um ator
shakespeariano nos Estados Unidos para ingressar numa trupe de
teatro na Irlanda, para depois
voltar aos Estados Unidos na pele
de um autêntico ator de teatro
shakespeariano formado na Europa. Confundiu fato e ficção em
"A Guerra dos Mundos", programa radiofônico que gerou pânico
nos Estados Unidos. A mistura de
ficção e realidade foi, também, a
matéria-prima de "Kane".
No início dos anos 70, Welles encontrava-se desacreditado. O
grande mágico, o contador de histórias que revolucionou o cinema
não tinha mais trabalho no seu
próprio país. Foi então que viu
um documentário feito pela BBC
de Londres sobre um falsário de
quadros, Elmyr de Hory.
Nas mãos de De Hory, cópias de
Picasso ou de Matisse passavam a
existir em poucos minutos. Cópias
praticamente perfeitas, que eram
compradas em leilões de arte e
que, surpreendentemente, emocionavam as pessoas mesmo depois de descoberta a falcatrua.
Welles viu em De Hory a matéria
ideal para questionar aquilo que
é ou não aceito como "verdade".
O resultado é um filme sobre a
imaginação e a invenção, talvez a
obra mais autobiográfica que
Welles jamais realizou.
Em "Verdades e Mentiras", Welles embaralhou ficção e realidade
a um tal ponto que é impossível
determinar aquilo que é, ou não,
"verdade". O enfermeiro de Mônaco não tinha o mesmo talento.
Sua história não tinha enredo, a
trama que inventou era simplista
e rala. Criou uma história com a
imaginação de um ex-boina-verde e acabou preso.
O que sobra de um episódio lamentável, em que duas vidas foram perdidas estupidamente?
Talvez, como sugere Welles em
"Verdades e Mentiras", a necessidade de manter um certo ceticismo em relação ao que vemos, ou
lemos.
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