São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


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WALTER SALLES
O crime de Mônaco, Hitchcock e Orson Welles

O culpado era o mordomo. Ou quase. A tragédia de Mônaco ganhou as páginas de jornais e revistas do mundo inteiro. Até aí, nada de inesperado. O caso funde as páginas policiais com a revista "Hola" e seus derivados nacionais -tudo aquilo que se procura vender aos desavisados hoje em dia. "Pulp fiction."
Mas há algo talvez mais surpreendente neste crime ainda mal explicado. É difícil, por exemplo, não se impressionar com o número de versões do caso adiantados como fatos que teriam realmente acontecido. Os desenhos narrando a entrada dos dois assassinos hipotéticos, mostrados em vários canais de televisão e publicados pela imprensa mundial, reforçaram essa impressão.
Imagens, mesmo desenhadas toscamente, dão substância aos fatos, inscrevem-se na memória das pessoas. Vendo os contornos dos dois homens mascarados, temos a estranha sensação de que eles efetivamente entraram naquele apartamento.
Há uma característica nesse caso que o aproxima dos filmes em que o ponto de vista é o do assassino. No crime de Mônaco, a narrativa foi conduzida pelo personagem cuja ação deflagrou a tragédia -o enfermeiro. Como foi ele que determinou o desenvolvimento da trama, acabou embaralhando a história, adulterando os fatos para não ser descoberto.
Hitchcock usou do mesmo expediente em "Pânico nos Bastidores", filme que dirigiu em 1950, com Marlene Dietrich, Jane Wyman e Richard Todd. A trama envolve uma jovem estudante de teatro (Wyman) que procura inocentar o namorado (Todd) de um crime que ele diz não ter cometido. No meio da trama, Todd conta para a estudante a sua própria versão dos acontecimentos, que passa a ser vista em flashback. As imagens projetadas confirmam aquilo que Todd diz e acabam, por um momento, inocentando-o de um crime que realmente ele cometeu.
No excelente livro em que dialoga com François Truffaut, Hitchcock faz um "mea culpa" em relação a "Pânico nos Bastidores". "Mostrei nessa história algo que jamais deveria ter filmado: um "flashback" que era uma mentira". Truffaut concorda. Personagens cinematográficos mentem o tempo inteiro, como na vida real, mas não se deve legitimar essas mentiras traduzindo-as em imagens, dizia ele.
Voltando ao enfermeiro de plantão. Enquanto sua versão se sustentava, quantas vezes a máfia russa ou extremistas árabes não foram citados como prováveis responsáveis pelo crime? Percebe-se aí como é às vezes estreita a distância entre um fato e suas versões. O problema talvez seja ainda mais embaixo, diretamente ligado à questão do que é aceito, ou não, como "verdade".
Ninguém mostrou isso de forma tão genial quanto Orson Welles, num filme que mistura intencionalmente ficção, material documental e falsas reportagens, intitulado "F for Fake" -traduzido no Brasil por "Verdades e Mentiras". Welles fez o filme em 1973, quando já tinha vivido várias vidas. Em 1941, havia reinventado o cinema com "Cidadão Kane".
Tinha feito adaptações soberbas de Shakespeare e Kafka. Mas também tinha tido sérios conflitos com os estúdios hollywoodianos, deixando filmes inacabados -entre eles, "É Tudo Verdade", filmado no início dos anos 40 no Brasil. Havia sido considerado um gênio, mas também um manipulador, um falsário.
Não era para menos. Desde criança, Welles inventou a sua própria história. Criou fatos da sua infância que nunca existiram. Inventou que tinha sido um ator shakespeariano nos Estados Unidos para ingressar numa trupe de teatro na Irlanda, para depois voltar aos Estados Unidos na pele de um autêntico ator de teatro shakespeariano formado na Europa. Confundiu fato e ficção em "A Guerra dos Mundos", programa radiofônico que gerou pânico nos Estados Unidos. A mistura de ficção e realidade foi, também, a matéria-prima de "Kane".
No início dos anos 70, Welles encontrava-se desacreditado. O grande mágico, o contador de histórias que revolucionou o cinema não tinha mais trabalho no seu próprio país. Foi então que viu um documentário feito pela BBC de Londres sobre um falsário de quadros, Elmyr de Hory.
Nas mãos de De Hory, cópias de Picasso ou de Matisse passavam a existir em poucos minutos. Cópias praticamente perfeitas, que eram compradas em leilões de arte e que, surpreendentemente, emocionavam as pessoas mesmo depois de descoberta a falcatrua. Welles viu em De Hory a matéria ideal para questionar aquilo que é ou não aceito como "verdade". O resultado é um filme sobre a imaginação e a invenção, talvez a obra mais autobiográfica que Welles jamais realizou.
Em "Verdades e Mentiras", Welles embaralhou ficção e realidade a um tal ponto que é impossível determinar aquilo que é, ou não, "verdade". O enfermeiro de Mônaco não tinha o mesmo talento. Sua história não tinha enredo, a trama que inventou era simplista e rala. Criou uma história com a imaginação de um ex-boina-verde e acabou preso.
O que sobra de um episódio lamentável, em que duas vidas foram perdidas estupidamente? Talvez, como sugere Welles em "Verdades e Mentiras", a necessidade de manter um certo ceticismo em relação ao que vemos, ou lemos.


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