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POESIA
Autores da zona sul se reúnem semanalmente e lêem textos para público de até cem pessoas
Sarau transforma boteco em centro cultural
MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA
"O boteco é o centro cultural da
periferia", diz o poeta Sérgio Vaz.
A bússola aponta para a zona sul.
E é num deles, O Garajão, no
Jardim Maria Rosa, que nas noites
de quarta juntam-se poetas experientes, iniciantes e uma média de
cem pessoas de várias quebradas.
O público senta em torno de
mesas regadas à cerveja, para ouvir o grito semântico da perifa:
poemas de denúncia social, exaltação à consciência negra e, claro,
amor. Mano Brown, dos Racionais, é presença constante. Afro-X
e Simony já apareceram por lá.
Organizados por Vaz, da Cooperifa (Cooperativa dos Artistas
da Periferia), os saraus atraem expoentes da antiga comunidade e
novos poetas, como os adolescentes Kênia e Pelezinho.
Os dois pequenos trutas apareceram como ouvintes, descobriram um dom, e, semanalmente,
lêem um novo trabalho, escrito à
mão em folhas de caderno. Ambos são tímidos, mas não relutam
ao ser chamados para declamar.
"Invadimos o galpão de uma fábrica, mas tomaram ele da gente,
e começamos a fazer saraus num
boteco lá em cima. Até fizemos
uma peça, os caras bebendo cachaça, e a peça rolando", diz Vaz.
"Os artistas da periferia sabem:
ou você cava o espaço ou fica sem
nada. Já fui em saraus em outras
quebradas e saquei que precisávamos fazer o mesmo", explica.
A balada dura até meia-noite.
Como os saraus têm atraído muita gente, os organizadores levam
poemas de poetas consagrados,
de Maiakovsky a Leminsky, para
os que aparecem de mãos vazias.
"Isto aqui está virando um aparelho cultural, cada um fala de seu
trabalho. Virou um foco de resistência dentro da periferia. Não
adianta agitar sexta e sábado e, na
segunda, voltar a ser medíocre.
Temos que atacar", diz Vaz.
"Aqui, o silêncio é uma prece.
No primeiro dia, foi um choque,
acharam que era pagodão, mas
viram o silêncio. Hoje, há uma repercussão dentro da cidade", diz
Bodão, um dos sócios do bar.
Não se trata de mais um braço
do movimento hip hop, que faz
parte tanto quanto o samba.
"Não queremos o rótulo do hip
hop. Isto aqui é uma confraria de
artistas. Teve dia em que a entrada era um livro usado. Aqui, somos todos independentes. O boteco dá combustível para a criação", conta Vaz, autor de "Pensamentos Vadios" e criador de uma
biblioteca comunitária.
Ao ler um dos manuscritos de
Pelezinho, estranho a frase:
"Quando um VL aperta o gatilho,
o Lúcifer te conduz". Perguntei ao
pequeno poeta o que significa
"VL". Ele me olha como se eu tivesse perguntado a um playboy o
que é açaí. "VL é vida louca", respondeu. E o que é vida louca? Ele
não respondeu.
"Tem gente que escreve em casa, para desabafar as mágoas. Viu
o espaço aberto, pediu licença, declamou um poema, e, na semana
seguinte, foi convocado para vir.
Estamos resgatando-os para outro caminho", explica o poeta e
artista plástico Binho, que tem
um bar em Campo Limpo.
Binho faz intervenções em postes pela cidade, o que chama de
"Postesia". São placas com pequenos poemas, como: "O tiro é
no nariz, mas é no peito que dói".
"Minha idéia era fazer poesia em
postes, reciclando material de
campanha política. Depois, passei
a pintar e colocar nos postes, com
tinta doada. Não sei ainda o que é
meu trabalho. Vêm idéias na cabeça, a gente põe."
A prefeitura é o principal obstáculo. Ele as coloca à noite, e ela as
recolhe de dia. "A revolução tem
que começar praticando, exercitando, sem muita conversa", diz.
Ele que abriu o sarau na última
quarta, declamando: "No lugar
em que nasci, brincava que era tudo nosso, tinham o campinho e os
terrenos baldios, era o nosso território. Já foi interior, hoje, periferia, com as casas cruas. A cerca virou muro, óbvio. A cidade cresce,
o muro cresce. Vieram os prédios,
as delegacias. Hoje, pago imposto
dos impostores. Também cresci,
fiquei grande, não caibo dentro de
mim. E tão solitário, sou meu próprio vizinho."
Elmantos, 37, faz performances,
como "Os Milionários Malditos,
Fome e os Pobres Mendigos".
"Nasci na Bahia, na Fazenda Cabaceiras, onde nasceu Castro Alves. Tenho trabalho inspirado na
cultura afro, na fome, miséria, pobreza. Meus trabalhos são mais ligados à arte social", explica.
"É na periferia que existem os
melhores artistas. Não é porque
somos pobres, humildes, largados
e jogados que somos miseráveis.
Aqui tem arte, lazer", conta.
Pezão é fotógrafo do jornal local, "O Independente". Ele cobre
futebol de várzea. É poeta há muitos anos, com muita coisa guardada. Não tem livro publicado.
"Gosto de ler outros artistas, como Castro Alves. Não necessariamente tem a ver com os dramas
da periferia. Nesta noite, vou ler
Solano Trindade, poeta pernambucano que veio morar aqui, em
Embu, na década de 60", diz.
Em seguida, ele sobe e declama
"Bolinha de Gude", de Trindade.
Escrito há mais de três décadas, o
poema fala de moleques que viram assaltantes. Hoje, poderiam
estar declamando.
SARAU DA COOPERIFA.
Onde: O Garajão (estrada de São
Francisco, 787, Taboão da Serra,
tel. 0/ XX/11/4788-0705) Quando: toda
quarta, 20h. Quanto: grátis.
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