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São Paulo, quinta-feira, 11 de dezembro de 2003

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GASTRONOMIA

Muito foie gras, mas sempre com farinha

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Gosto de livros com cara de livro, formato de livro, todo coberto de letras escuras sobre fundo branco e cheio de assunto. E não me importo que tenha fotos ou não. Pode até ter.
Ao ver o livro do Atala, Alex Atala, editora Bei, ou melhor dois livros, um para ler e outro para ver, capa bonita, o meu desconfiômetro sobe a mil, febre terçã. Logo o Atala, um rapaz que eu gosto, que vi começando... Ai, ai, ai... ai.
São lindas as fotos do Brasil inteiro, não pensem que não são, mas vou pular, quero ir ao que me importa.
Qual a nacionalidade do chef? Já me contou mil vezes e esqueço, gente de cabelo vermelho, escocesa, irlandesa, será? Ah, está aqui, explicadinho. Milad Alexandre Mack Atala. "Sobrenome de origem palestina, do Oriente Médio. Mack vem da Inglaterra." Pronto. E nasceu no Brasil, foi criado na Mooca, li em algum lugar. Tinha um avô inspirador que o ensinou a caçar macuco. Já começo a entender melhor, um avô que caça macuco faz toda a diferença.
Vou ficando mais feliz, o Atala gosta de pescar e caçar e prezo os caçadores e pescadores, gente que se reintegra à natureza, que não renega o seu lado aventureiro e principalmente jogador. Caçar, "esa forma prístina de ser hombre". Que tem método, sempre alerta, e tem paciência e humildade para se rebaixar e lutar com o bicho em igualdade de condições. Um caçador ou pescador já tem meio caminho andado para ser um cozinheiro. Conhece muito bem seu ingrediente ainda vivo, sabe que armas usar, as manhas, esperar, respirar baixinho e ficar imóvel horas e horas. Entender o bicho.
Gostaria de falar do restaurante do Alex, o D.O.M., tão conhecido, mas só ouço falar, saio pouco, quase não como fora. Apesar de um dia ter dado nota dez, coisa difícil, para um jantar que o Atala fez inteirinho para mim, muitos anos atrás, ele meninote, investindo nas panelas. Era um concurso, ele réu e eu jurada.
De vez em quando nos cruzamos num trabalho conjunto e posso dizer que o rapaz é, antes de tudo, carismático. O cliente interessado numa festa chega para a reunião. Quer botar para quebrar, vai ser a festa do ano, vai esvaziar um silo de Ceasa, vai armar confusão, todo mundo vai ouvir falar. Três mil pessoas? E a comida, qual seria a comida? Palpites daqui, palpites dali e, de repente, o Atala tira uma idéia do bolso. Churrasquinho grego. Sabe, aquele do largo do Café com São Bento? Ou aquele ótimo da avenida Rio Branco -em frente ao Fórum Trabalhista?
O cliente baba de gozo. Ao churrasquinho grego! Poucos poderiam ter dado essa sugestão sem um trabalho grande e subliminar de fazer o cliente acreditar nele, não é verdade?
Tudo bem, a festa é um sucesso, e as mulheres de salto oito e pretinho básico, que nunca passaram por perto de um churrasco grego na vida, comem e adoram, lambuzando o batom. Ah, o Atala tem cada idéia! E tem mesmo. Criatividade herdada daquele avô dos macucos.
Atala cresceu. Quer as técnicas do mundo inteiro, vamos estagiar com Ferran Adrià, vamos à Tailândia e à China e ao Japão... mas sempre com aquela farinhazinha de mandioca no bolso. Por que a farinha?
Dentro de mim alguma coisa diz que esse chef é brasileiro de quatro costados, bisneto de turco, pode ser, mas apesar das estranhezas, das corridas pelo mundo, é daquela gente de interior, pito ou cigarrinho de palha, mãos nodosas, unhas sujas de mexer em terra, medos e coragens arquetípícas e, no gene, uma boa dose de invenção quixotesca para sobreviver nos fundões da nossa grandeza.
Criado perto do ribeirão, a casa com luz fraquinha de Caraguá enquanto ele dava brilho na madeira dos pios, ele sabe essas coisas que são nossas, disfarça um pouco, se cobre de tatuagens, mas aquilo não engana, é gente daqui mesmo, só que com o cabelo vermelho. E no dia que não se importar nada com as espumas e as baunilhas e as canelas e colherinhas, e assumir totalmente sua caipirice, sem abrir mão da criatividade, é claro, sai da frente.
Deixemos o Atala, el bonitón do Atala, e passemos às receitas do livro que está lançando:
Foie gras... com crocante de mandioca. Crocante de mandioca é a mandioca crua cortada em julienne e frita como batatinha palha. Gostaram? Quibe cru... de pitu. Beiju de tapioca... com queijo de Minas e tomate confit. Brandade de bacalhau... com couve. Foie gras... com mandioquinha. Ostras empanadas... com tapioca. Paleta de cordeiro com... farofa. Filhote... com tucupi e tapioca.
Ah, preciso ir lá no D.O.M. experimentar este cara de novo. Eliminar a suspeita gratuita que ele tenha uma comida de comer e uma de ver. Provar daquela farinha. Vocês, comprem os livros, vão ter uma idéia bastante boa, de todos os lados, de quem é este Milad Alexandre Mack Atala.


POR UMA GASTRONOMIA BRASILEIRA VOLS. 1 E 2. Autor: Alex Atala. Editora: Bei. Quanto: R$ 135. (208 págs., vol. 1; 164 págs., vol. 2).

ninahort@uol.com.br

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