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GASTRONOMIA
Muito foie gras, mas sempre com farinha
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Gosto de livros com cara de
livro, formato de livro, todo
coberto de letras escuras sobre
fundo branco e cheio de assunto.
E não me importo que tenha fotos
ou não. Pode até ter.
Ao ver o livro do Atala, Alex
Atala, editora Bei, ou melhor dois
livros, um para ler e outro para
ver, capa bonita, o meu desconfiômetro sobe a mil, febre terçã.
Logo o Atala, um rapaz que eu
gosto, que vi começando... Ai, ai,
ai... ai.
São lindas as fotos do Brasil inteiro, não pensem que não são,
mas vou pular, quero ir ao que me
importa.
Qual a nacionalidade do chef? Já
me contou mil vezes e esqueço,
gente de cabelo vermelho, escocesa, irlandesa, será? Ah, está aqui,
explicadinho. Milad Alexandre
Mack Atala. "Sobrenome de origem palestina, do Oriente Médio.
Mack vem da Inglaterra." Pronto.
E nasceu no Brasil, foi criado na
Mooca, li em algum lugar. Tinha
um avô inspirador que o ensinou
a caçar macuco. Já começo a entender melhor, um avô que caça
macuco faz toda a diferença.
Vou ficando mais feliz, o Atala
gosta de pescar e caçar e prezo os
caçadores e pescadores, gente que
se reintegra à natureza, que não
renega o seu lado aventureiro e
principalmente jogador. Caçar,
"esa forma prístina de ser hombre". Que tem método, sempre
alerta, e tem paciência e humildade para se rebaixar e lutar com o
bicho em igualdade de condições.
Um caçador ou pescador já tem
meio caminho andado para ser
um cozinheiro. Conhece muito
bem seu ingrediente ainda vivo,
sabe que armas usar, as manhas,
esperar, respirar baixinho e ficar
imóvel horas e horas. Entender o
bicho.
Gostaria de falar do restaurante
do Alex, o D.O.M., tão conhecido,
mas só ouço falar, saio pouco,
quase não como fora. Apesar de
um dia ter dado nota dez, coisa difícil, para um jantar que o Atala
fez inteirinho para mim, muitos
anos atrás, ele meninote, investindo nas panelas. Era um concurso,
ele réu e eu jurada.
De vez em quando nos cruzamos num trabalho conjunto e
posso dizer que o rapaz é, antes de
tudo, carismático. O cliente interessado numa festa chega para a
reunião. Quer botar para quebrar,
vai ser a festa do ano, vai esvaziar
um silo de Ceasa, vai armar confusão, todo mundo vai ouvir falar.
Três mil pessoas? E a comida, qual
seria a comida? Palpites daqui,
palpites dali e, de repente, o Atala
tira uma idéia do bolso. Churrasquinho grego. Sabe, aquele do largo do Café com São Bento? Ou
aquele ótimo da avenida Rio
Branco -em frente ao Fórum
Trabalhista?
O cliente baba de gozo. Ao churrasquinho grego! Poucos poderiam ter dado essa sugestão sem
um trabalho grande e subliminar
de fazer o cliente acreditar nele,
não é verdade?
Tudo bem, a festa é um sucesso,
e as mulheres de salto oito e pretinho básico, que nunca passaram
por perto de um churrasco grego
na vida, comem e adoram, lambuzando o batom. Ah, o Atala tem
cada idéia! E tem mesmo. Criatividade herdada daquele avô dos
macucos.
Atala cresceu. Quer as técnicas
do mundo inteiro, vamos estagiar
com Ferran Adrià, vamos à Tailândia e à China e ao Japão... mas
sempre com aquela farinhazinha
de mandioca no bolso. Por que a
farinha?
Dentro de mim alguma coisa
diz que esse chef é brasileiro de
quatro costados, bisneto de turco,
pode ser, mas apesar das estranhezas, das corridas pelo mundo,
é daquela gente de interior, pito
ou cigarrinho de palha, mãos nodosas, unhas sujas de mexer em
terra, medos e coragens arquetípícas e, no gene, uma boa dose de
invenção quixotesca para sobreviver nos fundões da nossa grandeza.
Criado perto do ribeirão, a casa
com luz fraquinha de Caraguá enquanto ele dava brilho na madeira
dos pios, ele sabe essas coisas que
são nossas, disfarça um pouco, se
cobre de tatuagens, mas aquilo
não engana, é gente daqui mesmo, só que com o cabelo vermelho. E no dia que não se importar
nada com as espumas e as baunilhas e as canelas e colherinhas, e
assumir totalmente sua caipirice,
sem abrir mão da criatividade, é
claro, sai da frente.
Deixemos o Atala, el bonitón do
Atala, e passemos às receitas do livro que está lançando:
Foie gras... com crocante de
mandioca. Crocante de mandioca
é a mandioca crua cortada em julienne e frita como batatinha palha. Gostaram? Quibe cru... de pitu. Beiju de tapioca... com queijo
de Minas e tomate confit. Brandade de bacalhau... com couve. Foie
gras... com mandioquinha. Ostras
empanadas... com tapioca. Paleta
de cordeiro com... farofa. Filhote... com tucupi e tapioca.
Ah, preciso ir lá no D.O.M. experimentar este cara de novo. Eliminar a suspeita gratuita que ele
tenha uma comida de comer e
uma de ver. Provar daquela farinha. Vocês, comprem os livros,
vão ter uma idéia bastante boa, de
todos os lados, de quem é este Milad Alexandre Mack Atala.
POR UMA GASTRONOMIA
BRASILEIRA VOLS. 1 E 2. Autor: Alex
Atala. Editora: Bei. Quanto: R$ 135. (208
págs., vol. 1; 164 págs., vol. 2).
ninahort@uol.com.br
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