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"A CASA DOS BUDAS DITOSOS"
Espetáculo requintado redime sexualidade da platéia
SERGIO SALVIA COELHO
CRITICO DA FOLHA
Fernanda Torres interpreta
"A Casa dos Budas Ditosos",
talvez o mais despudorado romance brasileiro, em forma de
monólogo. Era de se imaginar,
marcada como está Fernanda por
personagens debochados, que o
espetáculo beiraria o besteirol,
com o riso redimindo o constrangimento pela exposição de taras
sexuais.
Mas não: a altiva senhora baiana, que registra ao gravador suas
memórias para enviá-las ao autor
João Ubaldo Ribeiro, não é a Vani
de "Os Normais" aos 68 anos. Sequer seria sua mãe: tivesse uma
mãe tão segura de sua sexualidade, Vani nunca seria a neurótica
que tanta identificação obteve na
TV.
Meticulosa, quase didática, mas
sem querer se estabelecer enquanto exemplo, enquanto vai
trocando as fitas no gravador essa
senhora desfia suas experiências
sexuais sem nenhuma culpa, e
quase sem volúpia: impõe respeito pela serenidade, com uma
"inocência de copo d'água" como
diz Drummond, em "Mulher Andando Nua pela Casa".
E o que evoca deslumbra mais
do que choca, como se fosse sobre-humana, uma privilegiada
que pôde realizar todas as fantasias que o comum dos mortais só
vislumbra em forma de tentação.
Com despojamento, mas sem se
tornar monótono, o espetáculo
parece durar menos que seus cem
minutos. Domingos de Oliveira
estabeleceu uma partitura de
ações de grande eficácia, à altura
do grande texto e da grande atriz
que tinha nas mãos.
Fernanda Torres tem uma precisão de movimentos e uma variação de entonações que domina o
público sem fazer alarde.
Cada pequeno objeto sobre a
mesa transparente tem sua função; cada evocação, seu tom próprio. Sabe ser venenosa de passagem, e assertiva sem dar margem
à contestação.
Às vezes, se aproxima do microfone e faz uma personagem rápida, uma menina que seduz seu
primeiro homem, trocando rápido de voz; às vezes, é a voz do autor João Ubaldo Ribeiro que se faz
ouvir, e ela deixa sua sensualidade
aflorar em silêncio: só suas pernas
falam.
Mas depois de deixar a platéia se
diluir em risinhos nervosos, antes
de um relato de ainda maior ousadia, deixa o silêncio ganhar a sala.
E então, a revelação do incesto
com o irmão não soa como uma
insolência, mas como uma declaração de amor; e a descrição da
perda da virgindade ganha um lirismo que redime a platéia de toda a vulgaridade que infesta o
país.
Esse requinte a serviço da transgressão é notado também na direção de arte de Daniela Thomas e
na luz precisa de Wagner Pinto.
Provocativo sem ser agressivo, revigorante sem cair no deboche,
"A Casa dos Budas Ditosos" cumpre sua missão subversiva: ao fim
da peça, na platéia, reconciliados
com nossos pecados, a generosa
anarquia abre as asas sobre nós.
A Casa dos Budas Ditosos
Texto: João Ubaldo Ribeiro
Direção: Domingos de Oliveira
Com: Fernanda Torres
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil
-teatro (r. Álvares Penteado, 112, região
central, tel. 0/xx/11/3113-3651)
Quando: sex, às 20h; sáb., às 18h e 20h;
dom., às 19h. Até domingo.
Quanto: entrada franca
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