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São Paulo, quinta-feira, 11 de dezembro de 2003

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"A CASA DOS BUDAS DITOSOS"

Espetáculo requintado redime sexualidade da platéia

SERGIO SALVIA COELHO
CRITICO DA FOLHA

Fernanda Torres interpreta "A Casa dos Budas Ditosos", talvez o mais despudorado romance brasileiro, em forma de monólogo. Era de se imaginar, marcada como está Fernanda por personagens debochados, que o espetáculo beiraria o besteirol, com o riso redimindo o constrangimento pela exposição de taras sexuais.
Mas não: a altiva senhora baiana, que registra ao gravador suas memórias para enviá-las ao autor João Ubaldo Ribeiro, não é a Vani de "Os Normais" aos 68 anos. Sequer seria sua mãe: tivesse uma mãe tão segura de sua sexualidade, Vani nunca seria a neurótica que tanta identificação obteve na TV.
Meticulosa, quase didática, mas sem querer se estabelecer enquanto exemplo, enquanto vai trocando as fitas no gravador essa senhora desfia suas experiências sexuais sem nenhuma culpa, e quase sem volúpia: impõe respeito pela serenidade, com uma "inocência de copo d'água" como diz Drummond, em "Mulher Andando Nua pela Casa".
E o que evoca deslumbra mais do que choca, como se fosse sobre-humana, uma privilegiada que pôde realizar todas as fantasias que o comum dos mortais só vislumbra em forma de tentação.
Com despojamento, mas sem se tornar monótono, o espetáculo parece durar menos que seus cem minutos. Domingos de Oliveira estabeleceu uma partitura de ações de grande eficácia, à altura do grande texto e da grande atriz que tinha nas mãos.
Fernanda Torres tem uma precisão de movimentos e uma variação de entonações que domina o público sem fazer alarde.
Cada pequeno objeto sobre a mesa transparente tem sua função; cada evocação, seu tom próprio. Sabe ser venenosa de passagem, e assertiva sem dar margem à contestação.
Às vezes, se aproxima do microfone e faz uma personagem rápida, uma menina que seduz seu primeiro homem, trocando rápido de voz; às vezes, é a voz do autor João Ubaldo Ribeiro que se faz ouvir, e ela deixa sua sensualidade aflorar em silêncio: só suas pernas falam.
Mas depois de deixar a platéia se diluir em risinhos nervosos, antes de um relato de ainda maior ousadia, deixa o silêncio ganhar a sala. E então, a revelação do incesto com o irmão não soa como uma insolência, mas como uma declaração de amor; e a descrição da perda da virgindade ganha um lirismo que redime a platéia de toda a vulgaridade que infesta o país.
Esse requinte a serviço da transgressão é notado também na direção de arte de Daniela Thomas e na luz precisa de Wagner Pinto. Provocativo sem ser agressivo, revigorante sem cair no deboche, "A Casa dos Budas Ditosos" cumpre sua missão subversiva: ao fim da peça, na platéia, reconciliados com nossos pecados, a generosa anarquia abre as asas sobre nós.


A Casa dos Budas Ditosos
    
Texto: João Ubaldo Ribeiro
Direção: Domingos de Oliveira
Com: Fernanda Torres
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil -teatro (r. Álvares Penteado, 112, região central, tel. 0/xx/11/3113-3651)
Quando: sex, às 20h; sáb., às 18h e 20h; dom., às 19h. Até domingo.
Quanto: entrada franca



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