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RODAPÉ
Calendário de metáforas
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Os Dias", de Adriano Menezes, e "Primeiro de
Abril", de André Luiz Pinto: os títulos fazem, cada um a seu modo,
referência ao calendário, convidando à leitura conjunta desses
poetas praticamente estreantes. E
de fato, além da boa surpresa de
encontrar aqui uma poesia já madura, pode-se detectar alguns traços comuns entre os dois livros.
Em ambos a matéria descrita se
limita a uma cena, normalmente
um recorte de realidade (um pátio, uma marquise, uma imagem
da noite, um cadáver no asfalto),
ou então a gestos que, isolados da
seqüência dos movimentos do
corpo ou da consciência, são metonímias de nossa radical estranheza. A descrição acima, propositadamente abstrata, é uma tentativa de transmitir um pouco da
dificuldade dessa poesia que não
raro deriva para o hermetismo.
Mas aquilo que talvez seja um
defeito tem seus aspectos positivos: pois, ao contrário de uma
poesia de visões sublimes e universos imaginários (que exigem a
cumplicidade ou a boa vontade
do leitor), tanto Adriano Menezes
quanto André Luiz Pinto partem
do chão cotidiano para irem descobrindo ali sentidos ocultos, intensificados por uma linguagem
que se faz pela ordenação inusitada de palavras e imagens (e não
pelo léxico rebuscado ou, seu
oposto, uma linguagem sem sobressaltos, como é comum em
poetas que seguem a lição de coloquialidade do modernismo).
Em "Os Dias", o mineiro Adriano Menezes renova um lugar-comum (a perturbação provocada
pela modernidade no compasso
monótono da cena provinciana)
submetendo experiências espaciais a uma ordem em que "o próprio tempo é seu suporte". No
poema "Estação", os dormentes
da estrada de ferro abrem uma
"cicatriz sempre renovada" na
terra e são próteses da velocidade
devastadora do trem, que impõe à
vida pacata um ritmo no qual "tudo é ferro e perda/ pedra e pouco". Em "Tarde", a esmerilhadeira da oficina "fura aguda o tempo/
rouba a tarde do silêncio/ preenchendo de faíscas/ pensamentos
ausentes".
Dentro dessa mesma percepção, mas agora em tom autobiográfico, aparecem dois dos melhores poemas de Menezes: em
"Singer Manfg. Co", a velha máquina de costura se confunde com
o corpo da mãe num trabalho que
suspende a cadência linear das
horas: "Iscada a linha descia/ à
carretilha emagrecendo/ o retrós// o tempo revogado/ sígnico
em seus novelos/ é quase retrátil".
E em "Código Morse", a referência espacial (a palavra que transita
pelo fio do telégrafo) se desdobra
em mensagem do passado: "No
seu silêncio abstêmio/ sob o signo
da partida/ dentro do tempo e
atrás/ do telégrafo, o pai./ ferroviário de soslaios/ e linhas multiespécies,/ decifro 10 anos de
morte/ por seu morse".
Bem menos lírico e evocativo é
"Primeiro de Abril", de André
Luiz Pinto. Um dos poucos poemas em que podemos perceber
traços autobiográficos é o registro
violento de uma cena urbana: começa com um verso em forma de
oração -"Olhai os atropelados
da esquina"- e culmina numa
imagética sarcástica de corpos esquartejados, dispersos em hospitais cariocas.
O autor tem dicção solene, embora precisa e dura, com acentos
bíblicos -mas de uma religiosidade menos preocupada com a
transcendência do que com a finitude. O poema (sem título) que
começa com os versos "primeiro
rebenta/ desemparelhado em sua/
fúria; um problema/ comum ao
ministério de todos" e culmina no
encontro com "um galho que
pensou" é uma variação sobre a
imagem pascaliana do homem
como "caniço pensante" (ser insignificante, porém consciente de
sua miséria).
No "calendário de metáforas"
desse poeta, todo dia é "primeiro
de abril", Dia da Mentira. Por isso,
em diferentes momentos, ele descreve o homem como "marionete
de pensamentos" sempre "à beira
do ato", ou seja, habitando um
mundo precário, em que a ação
representada poeticamente é
sempre descontínua, sem causa
ou finalidade.
Os Dias
Autor: Adriano Menezes
Editora: Scriptum
Quanto: R$ 16 (48 págs.)
Primeiro de Abril
Autor: André Luiz Pinto
Editora: Hedra
Quanto: R$ 17 (64 págs.)
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