São Paulo, sábado, 11 de dezembro de 2004

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RODAPÉ

Calendário de metáforas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Os Dias", de Adriano Menezes, e "Primeiro de Abril", de André Luiz Pinto: os títulos fazem, cada um a seu modo, referência ao calendário, convidando à leitura conjunta desses poetas praticamente estreantes. E de fato, além da boa surpresa de encontrar aqui uma poesia já madura, pode-se detectar alguns traços comuns entre os dois livros.
Em ambos a matéria descrita se limita a uma cena, normalmente um recorte de realidade (um pátio, uma marquise, uma imagem da noite, um cadáver no asfalto), ou então a gestos que, isolados da seqüência dos movimentos do corpo ou da consciência, são metonímias de nossa radical estranheza. A descrição acima, propositadamente abstrata, é uma tentativa de transmitir um pouco da dificuldade dessa poesia que não raro deriva para o hermetismo.
Mas aquilo que talvez seja um defeito tem seus aspectos positivos: pois, ao contrário de uma poesia de visões sublimes e universos imaginários (que exigem a cumplicidade ou a boa vontade do leitor), tanto Adriano Menezes quanto André Luiz Pinto partem do chão cotidiano para irem descobrindo ali sentidos ocultos, intensificados por uma linguagem que se faz pela ordenação inusitada de palavras e imagens (e não pelo léxico rebuscado ou, seu oposto, uma linguagem sem sobressaltos, como é comum em poetas que seguem a lição de coloquialidade do modernismo).
Em "Os Dias", o mineiro Adriano Menezes renova um lugar-comum (a perturbação provocada pela modernidade no compasso monótono da cena provinciana) submetendo experiências espaciais a uma ordem em que "o próprio tempo é seu suporte". No poema "Estação", os dormentes da estrada de ferro abrem uma "cicatriz sempre renovada" na terra e são próteses da velocidade devastadora do trem, que impõe à vida pacata um ritmo no qual "tudo é ferro e perda/ pedra e pouco". Em "Tarde", a esmerilhadeira da oficina "fura aguda o tempo/ rouba a tarde do silêncio/ preenchendo de faíscas/ pensamentos ausentes".
Dentro dessa mesma percepção, mas agora em tom autobiográfico, aparecem dois dos melhores poemas de Menezes: em "Singer Manfg. Co", a velha máquina de costura se confunde com o corpo da mãe num trabalho que suspende a cadência linear das horas: "Iscada a linha descia/ à carretilha emagrecendo/ o retrós// o tempo revogado/ sígnico em seus novelos/ é quase retrátil". E em "Código Morse", a referência espacial (a palavra que transita pelo fio do telégrafo) se desdobra em mensagem do passado: "No seu silêncio abstêmio/ sob o signo da partida/ dentro do tempo e atrás/ do telégrafo, o pai./ ferroviário de soslaios/ e linhas multiespécies,/ decifro 10 anos de morte/ por seu morse".
Bem menos lírico e evocativo é "Primeiro de Abril", de André Luiz Pinto. Um dos poucos poemas em que podemos perceber traços autobiográficos é o registro violento de uma cena urbana: começa com um verso em forma de oração -"Olhai os atropelados da esquina"- e culmina numa imagética sarcástica de corpos esquartejados, dispersos em hospitais cariocas.
O autor tem dicção solene, embora precisa e dura, com acentos bíblicos -mas de uma religiosidade menos preocupada com a transcendência do que com a finitude. O poema (sem título) que começa com os versos "primeiro rebenta/ desemparelhado em sua/ fúria; um problema/ comum ao ministério de todos" e culmina no encontro com "um galho que pensou" é uma variação sobre a imagem pascaliana do homem como "caniço pensante" (ser insignificante, porém consciente de sua miséria).
No "calendário de metáforas" desse poeta, todo dia é "primeiro de abril", Dia da Mentira. Por isso, em diferentes momentos, ele descreve o homem como "marionete de pensamentos" sempre "à beira do ato", ou seja, habitando um mundo precário, em que a ação representada poeticamente é sempre descontínua, sem causa ou finalidade.


Os Dias
   
Autor: Adriano Menezes
Editora: Scriptum
Quanto: R$ 16 (48 págs.)

Primeiro de Abril
   
Autor: André Luiz Pinto
Editora: Hedra
Quanto: R$ 17 (64 págs.)



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