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CRÍTICA
Personagens-refletores revelam e omitem realidade
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Paulo Henriques Britto
transpôs a ponte com segurança e sem alarde. A tal ponte é a
que separa a poesia e a tradução
da prosa de ficção. Recursos para
exibir-se, ele tem. Autor de versos
premiados, verteu com mestria
Thomas Pynchon, Wallace Stevens e William Faulkner.
Não chega a ser surpresa para
quem acompanhou as amostras
que o escritor vinha publicando
aqui e ali e que foram agora reunidas, com outros textos, nestes
"Paraísos Artificiais". O que eles
apresentam? Em geral, um personagem metido numa situação cotidiana, aparentemente banal
-uma doença, uma ceia natalina, a movimentação dos vizinhos-, que vai se revelando estranha, aflitiva, periclitante.
Em "Um Criminoso", o narrador ouve ruídos de festa num
apartamento vizinho. No prédio
em frente, uma mulher perambula pela sala. Abaixo, na rua, um casal troca amassos fogosos. A situação evolui para a idéia de que o
casal, em conivência com o porteiro do prédio da mulher solitária, conseguiria penetrar no apartamento dela, para prosseguir
com sua cena de volúpia. Claro,
toda a ação evolui dentro da mente do narrador. Ou não?
A ambigüidade pode não provir
inteiramente da manipulação
mental do narrador, mas da conjuntura em si, como em dois dos
melhores contos do livro, "Coisa
de Família" e "O Primo". No primeiro deles, o herói, residente no
estrangeiro, é convidado a participar de uma noite de Natal com a
família de seu vizinho. Durante a
ceia, uma discussão ocorre.
O herói, observador circunstancial daquela família desconhecida, não tem como abarcar o sentido completo da cena que se de-
senrola diante de si. Ele só captura
fiapos de realidade, os quais,
transmitidos ao leitor, podem esclarecer algo, mas não tudo.
Pior, esses nacos de percepção
podem trazer mais dúvidas do
que soluções, para o desvendamento do mistério que se estabelece. A incerteza instala-se porque
a história é contada a partir de um
ponto de vista único, que lança
luz sobre certos aspectos, mas
obrigatoriamente deixa outros
submersos na escuridão.
A técnica, de empregar um personagem-refletor que mostra e
esconde, ilumina e obscurece a
realidade, foi desenvolvida pelo
escritor norte-americano Henry
James (1843-1916), de quem Britto
ainda toma emprestado o argumento para o último e mais longo
dos contos, "Os Sonetos Negros".
A idéia sobre um pesquisador às
voltas com documentos preciosos
do passado e uma decisão existencial no presente que essa "exumação" suscita está contida no
conto "Os Papéis de Aspern", de
James, e foi utilizada ainda pelo
mexicano Carlos Fuentes, no excepcional "Aura".
Enquanto Fuentes investe no lirismo e na idéia fantasmagórica
do duplo, Britto restabelece o sentido farsesco contido no episódio
verídico que inspirou o conto de
Henry James. O brasileiro recompõe a convocação ao matrimônio
do original num bem-humorado
dilema sobre o politicamente correto. Curioso notar que redunda
no menos jamesiano dos contos
da coletânea.
Paraísos Artificiais
Autor: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28,50 (128 págs.)
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