São Paulo, sábado, 11 de dezembro de 2004

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CRÍTICA

Personagens-refletores revelam e omitem realidade

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Paulo Henriques Britto transpôs a ponte com segurança e sem alarde. A tal ponte é a que separa a poesia e a tradução da prosa de ficção. Recursos para exibir-se, ele tem. Autor de versos premiados, verteu com mestria Thomas Pynchon, Wallace Stevens e William Faulkner.
Não chega a ser surpresa para quem acompanhou as amostras que o escritor vinha publicando aqui e ali e que foram agora reunidas, com outros textos, nestes "Paraísos Artificiais". O que eles apresentam? Em geral, um personagem metido numa situação cotidiana, aparentemente banal -uma doença, uma ceia natalina, a movimentação dos vizinhos-, que vai se revelando estranha, aflitiva, periclitante.
Em "Um Criminoso", o narrador ouve ruídos de festa num apartamento vizinho. No prédio em frente, uma mulher perambula pela sala. Abaixo, na rua, um casal troca amassos fogosos. A situação evolui para a idéia de que o casal, em conivência com o porteiro do prédio da mulher solitária, conseguiria penetrar no apartamento dela, para prosseguir com sua cena de volúpia. Claro, toda a ação evolui dentro da mente do narrador. Ou não?
A ambigüidade pode não provir inteiramente da manipulação mental do narrador, mas da conjuntura em si, como em dois dos melhores contos do livro, "Coisa de Família" e "O Primo". No primeiro deles, o herói, residente no estrangeiro, é convidado a participar de uma noite de Natal com a família de seu vizinho. Durante a ceia, uma discussão ocorre.
O herói, observador circunstancial daquela família desconhecida, não tem como abarcar o sentido completo da cena que se de- senrola diante de si. Ele só captura fiapos de realidade, os quais, transmitidos ao leitor, podem esclarecer algo, mas não tudo.
Pior, esses nacos de percepção podem trazer mais dúvidas do que soluções, para o desvendamento do mistério que se estabelece. A incerteza instala-se porque a história é contada a partir de um ponto de vista único, que lança luz sobre certos aspectos, mas obrigatoriamente deixa outros submersos na escuridão.
A técnica, de empregar um personagem-refletor que mostra e esconde, ilumina e obscurece a realidade, foi desenvolvida pelo escritor norte-americano Henry James (1843-1916), de quem Britto ainda toma emprestado o argumento para o último e mais longo dos contos, "Os Sonetos Negros".
A idéia sobre um pesquisador às voltas com documentos preciosos do passado e uma decisão existencial no presente que essa "exumação" suscita está contida no conto "Os Papéis de Aspern", de James, e foi utilizada ainda pelo mexicano Carlos Fuentes, no excepcional "Aura".
Enquanto Fuentes investe no lirismo e na idéia fantasmagórica do duplo, Britto restabelece o sentido farsesco contido no episódio verídico que inspirou o conto de Henry James. O brasileiro recompõe a convocação ao matrimônio do original num bem-humorado dilema sobre o politicamente correto. Curioso notar que redunda no menos jamesiano dos contos da coletânea.


Paraísos Artificiais
    
Autor: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28,50 (128 págs.)



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