São Paulo, sábado, 11 de dezembro de 2004

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BIOGRAFIA

Crítico reúne perfis de 25 personalidades como Greta Garbo e Brecht

Com "flashes", Tynan ilumina a vida de estrelas das artes

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Sinto certa dificuldade em resenhar "A Vida como Performance", pois a tentação seria citá-lo sem parar. Fazendo perfis jornalísticos de celebridades como Laurence Olivier, Duke Ellington, Marlene Dietrich, Humphrey Bogart ou Bertolt Brecht, o crítico teatral inglês Kenneth Tynan (1927-1980) escreve com a rapidez dos flashes fotográficos; cada anedota, cada frase, cada adjetivo, é uma iluminação.
Começo com a frase de Tynan sobre Greta Garbo, que o organizador do livro, Daniel Piza, cita no posfácio: "O que um homem vê bêbado nas outras mulheres, vê sóbrio em Greta Garbo". Continuo um pouco: "A aparência de Garbo e, em especial, seu porte, sempre estabeleceu uma maravilhosa dissonância com o que ela estava dizendo. Seus largos ombros de marfim pertenciam a um arremessador de lanças; ela caminhava obliquamente, parecendo andar de lado mesmo quando dava passadas largas, como um meio-peado que se aproxima do adversário: como poderia esse porte atlético conter um espírito tão frágil e suplicante?".
Uma das intuições mais nítidas de Kenneth Tynan nesses retratos é a de que um ator, afinal de contas, é tão importante pelo corpo, pelo rosto, pelo jeito que tem, quanto pela sua técnica ou seus "sentimentos". O aspecto físico de cada personagem retratado -as narinas de Katherine Hepburn, as bochechas de Orson Welles, o nariz de John Gielgud- rende ao crítico tantos parágrafos quanto o recenseamento de sua carreira ou as anedotas que ele considere interessante mencionar.
Sobretudo, nada de fofocas. O vaivém dos casamentos e divórcios das estrelas é muito menos interessante, afinal, do que a fantasia difusa que emana de cada ator; de resto, Tynan não escreve exatamente a respeito do corpo, da aparência física real de Marlene Dietrich, de Greta Garbo ou de Louise Brooks, e sim sobre a sexualidade desses mitos. Tratando-se de textos publicados na sua maioria nas décadas de 50 e 60, em revistas como "Harper's Bazaar", "Woman's Journal" e mesmo "Sports Illustrated" (caso do magnífico artigo sobre o toureiro Antonio Ordoñez), não é difícil imaginar o quanto essa perspectiva teve de inovadora.
Há algo de sexual no próprio modo de Tynan escrever: como se reiterasse, em frases sucessivas, seu contato físico com a personalidade retratada. A insistência na procura de um adjetivo perfeito, a impressão de sempre estar recomeçando o texto a cada parágrafo, nunca tem o efeito de tornar sua leitura tediosa. Ao contrário, faz com que cada frase sua seja eminentemente citável, pronta para ser gravada na memória.
Nesse sistema de "desenvolver" uma mesma idéia, uma mesma percepção, ao longo de aproximações cada vez mais iluminadoras de seu objeto, a escrita de Tynan é fortemente influenciada pelo crítico romântico William Hazlitt (1778-1830), a quem ele cita com freqüência.
Há ocasiões em que o método dá errado: a procura de metáforas novas para dar conta de uma mesma sensação esbarra na extravagância, ou mesmo no clichê. Num artigo sobre Graham Greene, por exemplo, Tynan explica por que o escritor católico vê com desconfiança a psiquiatria: talvez seja feita "para jogar fora o bebê da criatividade junto com a água da neurose". Sobre determinado desempenho teatral de Edith Evans, lemos que "cada sentença sua brilhava como uma sucessão de esmeraldas gigantes". Às vezes, fica complicado decidir se as metáforas de Tynan são boas ou ruins. Descrevendo um solo do trompetista Miles Davis, ele fala de "cada nota pendente no ar como uma fruta madura -uvas Moselle carnudas quando o instrumento estava aberto, e ameixas em conserva quando estava com surdina".
Em seus melhores momentos, contudo -os textos sobre Greta Garbo, sobre Alec Guinness, sobre o diretor Peter Brook e tantos mais- o que se nota não é apenas um magistral talento para a descrição precisa, para ressaltar o que há de mais cativante e indefinível numa pessoa, mas uma qualidade mais rara de percepção, que se pode chamar de sabedoria.
Avaliando os livros de Graham Greene, impregnados de culpa e de pecado, Tynan nota a sua falta de "poesia e riso frutífero"; e acrescenta, com uma profundidade ao mesmo tempo goetheana e tipicamente britânica: "O teste final de um homem é a sua capacidade de exultação adequada".
O dom da profecia, tão raro no jornalismo, não lhe falta. Num artigo de 1954, Tynan descrevia o estilo de Peter Brook dizendo que "ele pertence ao futuro, porque não é obcecado por palavras, mas por visões e sensações. Vivemos no final da era da palavra; em breve, as respostas mais rápidas do olho talvez sejam oficialmente superiores". Pode ser. Mas provavelmente nenhum fotógrafo terá possuído um olhar tão agudo quanto o que se intui através das palavras desse crítico.


A Vida como Performance
    
Autor: Kenneth Tynan
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 48 (368 págs.)



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