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BIOGRAFIA
Crítico reúne perfis de 25 personalidades como Greta Garbo e Brecht
Com "flashes", Tynan ilumina a vida de estrelas das artes
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Sinto certa dificuldade em resenhar "A Vida como Performance", pois a tentação seria citá-lo sem parar. Fazendo perfis jornalísticos de celebridades como
Laurence Olivier, Duke Ellington,
Marlene Dietrich, Humphrey Bogart ou Bertolt Brecht, o crítico
teatral inglês Kenneth Tynan
(1927-1980) escreve com a rapidez
dos flashes fotográficos; cada anedota, cada frase, cada adjetivo, é
uma iluminação.
Começo com a frase de Tynan
sobre Greta Garbo, que o organizador do livro, Daniel Piza, cita no
posfácio: "O que um homem vê
bêbado nas outras mulheres, vê
sóbrio em Greta Garbo". Continuo um pouco: "A aparência de
Garbo e, em especial, seu porte,
sempre estabeleceu uma maravilhosa dissonância com o que ela
estava dizendo. Seus largos ombros de marfim pertenciam a um
arremessador de lanças; ela caminhava obliquamente, parecendo
andar de lado mesmo quando dava passadas largas, como um
meio-peado que se aproxima do
adversário: como poderia esse
porte atlético conter um espírito
tão frágil e suplicante?".
Uma das intuições mais nítidas
de Kenneth Tynan nesses retratos
é a de que um ator, afinal de contas, é tão importante pelo corpo,
pelo rosto, pelo jeito que tem,
quanto pela sua técnica ou seus
"sentimentos". O aspecto físico de
cada personagem retratado -as
narinas de Katherine Hepburn, as
bochechas de Orson Welles, o nariz de John Gielgud- rende ao
crítico tantos parágrafos quanto o
recenseamento de sua carreira ou
as anedotas que ele considere interessante mencionar.
Sobretudo, nada de fofocas. O
vaivém dos casamentos e divórcios das estrelas é muito menos
interessante, afinal, do que a fantasia difusa que emana de cada
ator; de resto, Tynan não escreve
exatamente a respeito do corpo,
da aparência física real de Marlene Dietrich, de Greta Garbo ou de
Louise Brooks, e sim sobre a sexualidade desses mitos. Tratando-se de textos publicados na sua
maioria nas décadas de 50 e 60,
em revistas como "Harper's Bazaar", "Woman's Journal" e mesmo "Sports Illustrated" (caso do
magnífico artigo sobre o toureiro
Antonio Ordoñez), não é difícil
imaginar o quanto essa perspectiva teve de inovadora.
Há algo de sexual no próprio
modo de Tynan escrever: como se
reiterasse, em frases sucessivas,
seu contato físico com a personalidade retratada. A insistência na
procura de um adjetivo perfeito, a
impressão de sempre estar recomeçando o texto a cada parágrafo, nunca tem o efeito de tornar
sua leitura tediosa. Ao contrário,
faz com que cada frase sua seja
eminentemente citável, pronta
para ser gravada na memória.
Nesse sistema de "desenvolver"
uma mesma idéia, uma mesma
percepção, ao longo de aproximações cada vez mais iluminadoras
de seu objeto, a escrita de Tynan é
fortemente influenciada pelo crítico romântico William Hazlitt
(1778-1830), a quem ele cita com
freqüência.
Há ocasiões em que o método
dá errado: a procura de metáforas
novas para dar conta de uma
mesma sensação esbarra na extravagância, ou mesmo no clichê.
Num artigo sobre Graham Greene, por exemplo, Tynan explica
por que o escritor católico vê com
desconfiança a psiquiatria: talvez
seja feita "para jogar fora o bebê
da criatividade junto com a água
da neurose". Sobre determinado
desempenho teatral de Edith
Evans, lemos que "cada sentença
sua brilhava como uma sucessão
de esmeraldas gigantes". Às vezes,
fica complicado decidir se as metáforas de Tynan são boas ou
ruins. Descrevendo um solo do
trompetista Miles Davis, ele fala
de "cada nota pendente no ar como uma fruta madura -uvas
Moselle carnudas quando o instrumento estava aberto, e ameixas
em conserva quando estava com
surdina".
Em seus melhores momentos,
contudo -os textos sobre Greta
Garbo, sobre Alec Guinness, sobre o diretor Peter Brook e tantos
mais- o que se nota não é apenas
um magistral talento para a descrição precisa, para ressaltar o que
há de mais cativante e indefinível
numa pessoa, mas uma qualidade
mais rara de percepção, que se
pode chamar de sabedoria.
Avaliando os livros de Graham
Greene, impregnados de culpa e
de pecado, Tynan nota a sua falta
de "poesia e riso frutífero"; e
acrescenta, com uma profundidade ao mesmo tempo goetheana e
tipicamente britânica: "O teste final de um homem é a sua capacidade de exultação adequada".
O dom da profecia, tão raro no
jornalismo, não lhe falta. Num artigo de 1954, Tynan descrevia o
estilo de Peter Brook dizendo que
"ele pertence ao futuro, porque
não é obcecado por palavras, mas
por visões e sensações. Vivemos
no final da era da palavra; em breve, as respostas mais rápidas do
olho talvez sejam oficialmente superiores". Pode ser. Mas provavelmente nenhum fotógrafo terá
possuído um olhar tão agudo
quanto o que se intui através das
palavras desse crítico.
A Vida como Performance
Autor: Kenneth Tynan
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 48 (368 págs.)
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