São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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"ATRAVÉS DE UM ESPELHO'/"LUZ DE INVERNO"

Filmes vêem maturidade de Bergman

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

O início , surpreendente, marca o encontro de Ingmar Bergman com a ilha de Farö, paisagem que inspiraria seus melhores filmes e hoje inspira a velhice solitária do diretor. Uma imagem de fundo bíblico, quatro silhuetas saindo do mar ao alvorecer: uma apresentação sucinta, direta dos personagens, o "pulo do gato" de um cineasta pronto a ingressar em sua melhor fase.
"Através de um Espelho" (1961) abre a "trilogia do silêncio", centrada na questão da existência de Deus -"Luz de Inverno" e "O Silêncio" fecham o pacote. O título é a citação de uma epístola de são Paulo: "Agora nos vemos como através de um espelho, obscuramente; depois nos veremos face a face". Uma referência ao problema de Karim (Harriet Andersson) -em torno do qual gravitam o pai, o marido e o irmão. Presa a um surto de esquizofrenia religiosa, ela tem um encontro marcado com Deus atrás do papel de parede.
A segunda seqüência do filme é uma evidência do amadurecimento de Bergman como dramaturgo. Da exposição do problema de Karim à investigação de suas causas, é todo um romance familiar que se apreende de uma cena diabolicamente simples: o pai exibe os presentes burocráticos que trouxe de sua última viagem e, em retribuição, os filhos encenam, em uma peça teatral, o seu amor não-correspondido. O romance familiar bergmaniano começa seguindo o clássico roteiro freudiano: a ausência do pai gerando o sentimento religioso.
Em "Luz de Inverno" (1962), Bergman parte do ponto de chegada do filme anterior, levando às últimas conseqüências a fala conclusiva do personagem de Gunnar Bjornstrand ao final de "Através": "O amor é Deus, Deus é o amor". O próprio Bjornstrand faz o pastor que, tendo perdido a fé, encontra sua única salvação no amor monstruoso de Martha (Ingrid Thulin, o motor do filme). Ao profanar esse amor, ele se vê diante do silêncio de Deus.
O escritor que vampiriza a esquizofrenia da filha em "Através", o pastor que inveja a fé dos fiéis em "Luz de Inverno": os personagens parasitários que Bjornstrand encarna na trilogia, espécies de autômatos habitados pelo silêncio, traduzem certo estado de alma do autor. Bergman se depara com seu niilismo. O niilismo do rosto humano, como ele irá descobrir nos filmes seguintes.
Bergman aprimora-se como dramaturgo nesses filmes com o mesmo empenho com que irá se testar como cineasta em "O Silêncio", desfecho de uma trilogia que pode ser vista como uma longa preparação para as obras-primas bergmanianas. Nos rostos dissonantes das irmãs de "O Silêncio", há o embrião de "Gritos e Sussurros", na angústia do escritor de Bjornstrand, o esboço do pintor de "A Hora do Lobo", e no cuidado com que cerca a loucura e o mistério da psique feminina em "Através", a origem da abordagem sem rodeios de "Persona".


Através de um Espelho/Luz de Inverno
    
Direção:
Ingmar Bergman
Distribuidora: Versátil (R$ 37,50, em média, cada um)



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