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SHAKESPEARE POR BLOOM
"Não sou teórico, não acredito em teoria"
Reprodução
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Harold Bloom
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especial para a Folha
Leia, abaixo, a continuação da
entrevista com Harold Bloom,
professor de literatura das universidades de Yale e Nova York e autor de "Shakespeare - A Invenção
do Humano."
(BERNARDO CARVALHO)
Folha - Por que o sr. acha que a
representação psicológica da personalidade é melhor do que qualquer outro tipo de representação,
como a alegoria, por exemplo?
Harold Bloom - Não estou dizendo que é melhor, mas que historicamente foi a que ganhou. Quando
lemos Shakespeare, temos a impressão, errônea, a meu ver, de que
aquilo é a natureza, a natureza humana. É esse o poder de Shakespeare. Ele se apropriou da natureza e da natureza humana. É essa a
sua grande vitória: ele nos shakespearizou.
Folha - O sr. não acha que pode
estar sendo guiado, com esse raciocínio, não por um valor universal, como reivindica, mas por critérios específicos de um determinado momento e lugar?
Bloom - Não. Tenho informações
de pessoas do
mundo inteiro, indonésios, chineses,
indianos, gente de
Ulan Bator, na
Mongólia, da Romênia, da Argentina, que viram Shakespeare ser montado em diversas
línguas, e mesmo
aqueles nessas platéias que nunca leram Shakespeare
antes ficam convencidos de que ele
os colocou no palco. Como é que você pode dizer que meus critérios
são estreitos?
Folha - Não estou dizendo que os
seus critérios são estreitos, mas
que podem ser específicos. Por
exemplo: o sr. diz que, quando
pensamos nas paixões shakespearianas, pensamos em famílias. Mas
a família tem sido nas últimas décadas uma obsessão particular dos
escritores americanos. Quase todo
primeiro romance americano nos
últimos anos é sobre famílias...
Bloom - Deixe-me interrompê-lo. Todas as sociedades humanas,
ao longo da história, em todas as
culturas que conhecemos, para
além de períodos históricos, de raça, de línguas, tudo na história da
humanidade nos ensina que, no
fim, haverá sempre a família. Isso é
universal. Refuto com veemência
que exista algo de particularmente
americano no meu livro. Esse é o
argumento do que eu chamo de
"escola do ressentimento".
Folha - Mas se, de fato, como o sr.
defende, não podemos inventar
Shakespeare, mas somos inventados por ele, então o seu livro, que
é obviamente uma tentativa de inventar o seu próprio Shakespeare,
torna-se um paradoxo.
Bloom - Como é possível no ano
de 1998 publicar um livro que não
seja um paradoxo? Obviamente,
estou preso a um momento e a um
lugar específicos; estou preso a
uma luta feroz contra o que vejo
como uma tragédia cultural, que é
a destruição dos parâmetros estéticos no ensino da literatura nos países de língua inglesa -e cada vez
mais nos países de língua espanhola e portuguesa. Posso cair na armadilha desse paradoxo, mas tenho consciência disso.
Folha - O sr. chama de "escola do
ressentimento" aqueles que põem
a teoria na frente da literatura...
Bloom - Ou seja, com poucas exceções, todos os críticos hoje no
mundo ocidental. São quase todos
ideólogos. Feministas que não são
feministas. Dizem-se marxistas,
mas não são marxistas. Dizem-se
seguidores de um ou outro profeta
parisiense, mas então nem críticos
são. O interesse deles não é estético. Não gostam de Shakespeare.
Têm rancor de Shakespeare. Chegamos a um ponto absurdo em que
alguém que acredita, como eu, que
um grande romance como "Meridiano de Sangue", de Cormac
McCarthy, é superior a, por exemplo, "Beloved", de Tony Morrison,
a meu ver literatura de supermercado, passa a ser visto como um
conservador.
Folha - O sr. reivindica para Shakespeare um lugar acima da história, alegando que ele não se encaixa nos arquivos de Foucault...
Bloom - O que você quer dizer
com acima da história?! Você está
se referindo a "História", com agá
maiúsculo. Eu estou falando da
história da teoria, da escola do ressentimento, dos pseudo-marxistas! Ninguém está acima da História, nem Shakespeare. Mas a força
do valor estético pode estar menos
para além da história do que ser a
própria história. Existe a verdadeira história imaginativa e existe a
falsa história. O valor de Shakespeare pertence à primeira.
Como dizia Blake, não vou entregar a história aos acusadores. Eu,
Harold Bloom, não vou entregar a
história aos representantes do historicismo. Foucault para mim não
é um deus; é só mais um demônio.
Folha - Para mim não é uma coisa
nem outra. Mas me parece curioso
que o título do seu livro ("A Invenção do Humano") lembre uma das
principais idéias de Foucault em
"As Palavras e as Coisas". Foucault
mostra que a noção de humano,
do homem tal qual nós o conhecemos hoje, não existiu sempre, mas
foi criada a partir de um certo estágio da história da humanidade e
das ciências. É interessante que,
embora atacando Foucault, o sr.
parece, talvez inconscientemente,
se inspirar nas idéias dele.
Bloom - Não concordo com Foucault e não concordo com você. O
entendimento adequado de Shakespeare nos mostra que a concepção do homem está profundamente enraizada na história humana.
Quando falo da "invenção do humano", estou pressupondo que
Shakespeare tomou a concepção
do humano tal qual a recebeu de
Chaucer, da Bíblia inglesa, e a
transcendeu, para reinventá-la e
torná-la mais próxima do que somos hoje. Não acredito, como
Foucault, que sejamos vítimas de
um processo. Acredito na liberdade humana, tal como Shakespeare.
Folha - Mas o sr. diz que a personalidade humana foi criada em um
certo momento, por um certo autor, no caso, Shakespeare...
Bloom - Não, não, não. Não estou
dizendo isso. Isso seria uma terrível redução. Estou levantando a
possibilidade imaginativa de que
uma boa parte do que vemos como
a personalidade humana é uma invenção ou reinvenção shakespeariana. Citando Oscar Wilde, diria
que a influência de Shakespeare
sobre a vida é ainda maior do que a
influência da vida sobre Shakespeare. Ele modificou profundamente a nossa noção de personalidade humana. O título do meu livro não deve ser levado ao pé da letra. É uma metáfora. Invenção é a
essência da poesia. Shakespeare é o
maior de todos os poetas.
Folha - O sr. faz grandes esforços
para ter uma leitura shakespeariana de Shakespeare, livre de todos
os vícios teóricos atuais, mas ao
mesmo tempo tenta explicar várias passagens das peças por meio
de uma especulação sobre a psicologia do autor. O sr. acha que a explicação psicológica está para
além desses vícios teóricos?
Bloom - Meu caro, você deve
lembrar do capítulo "Freud, Uma
Leitura Shakespeariana" do meu
livro "O Cânone Ocidental". Não
acho que eu faça uma leitura freudiana de Shakespeare.
Folha - Não estou falando de psicanálise. Mas a sua leitura shakespeariana de Shakespeare me parece se pautar pela psicologia.
Bloom - Não sabemos quase nada
da vida de Shakespeare. Faço suposições nesse livro. Para mim, o
livro é uma interpretação útil das
peças, um auxílio ao leitor. Ao ler
as provas, me dei conta de que, de
certa forma, tinha escrito uma espécie de biografia especulativa de
Shakespeare. Só o tempo dirá a validade desse procedimento.
Folha - O sr. citou o seu "O Cânone Ocidental". O sr. escreveu um
cânone ocidental baseado apenas
no que havia disponível no mercado literário de língua inglesa...
Bloom - Espere aí. Você quer brigar, vamos brigar. Tenha muito
cuidado. Não endosso a lista e não
quero discuti-la. Gostaria que a lista fosse retirada de todas as traduções do livro. Eu estava considerando o interesse de leitores de língua inglesa. A lista não foi idéia minha. Ela não é o livro.
Folha - Mas o sr. não acha um
tanto arriscado publicar um livro
chamado "O Cânone Ocidental" e
deixar de fora alguns títulos fundamentais por não terem sido publicados em inglês?
Bloom - Espere um momento!
Sou um velho afável e gentil. Tento
não ser polêmico. Gostaria que você fosse um pouco mais gentil comigo. Todos temos nossas limitações. Faço o melhor que posso. E
não gostaria de ser atacado por
coisas que não fiz ou que não foram entendidas. Não sou uma autoridade em literatura portuguesa
ou brasileira e não pretendo ser.
Tenho sido muito atacado e estou
cansando de controvérsia.
Meu maior interesse na vida é
tornar Shakespeare e outros escritores que conheço a fundo mais
acessíveis. Não tenho nada a ver
com lutas ou discussões teóricas.
Acredito que há uma tragédia cultural pelo menos no mundo de língua inglesa. Nas universidades, os
grandes autores ocidentais foram
substituídos por ideologia. Não
sou um teórico da literatura. Não
acredito em teoria.
²
Livro: Shakespeare - The Invention of the
Human
Autor: Harold Bloom
Lançamento: Riverhead Books
Quanto: US$ 35 (745 páginas)
Onde encomendar: www.amazon.com
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