São Paulo, sexta, 11 de dezembro de 1998

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SHAKESPEARE POR BLOOM
"Não sou teórico, não acredito em teoria"

Reprodução
Harold Bloom


especial para a Folha

Leia, abaixo, a continuação da entrevista com Harold Bloom, professor de literatura das universidades de Yale e Nova York e autor de "Shakespeare - A Invenção do Humano."
(BERNARDO CARVALHO)

Folha - Por que o sr. acha que a representação psicológica da personalidade é melhor do que qualquer outro tipo de representação, como a alegoria, por exemplo?
Harold Bloom - Não estou dizendo que é melhor, mas que historicamente foi a que ganhou. Quando lemos Shakespeare, temos a impressão, errônea, a meu ver, de que aquilo é a natureza, a natureza humana. É esse o poder de Shakespeare. Ele se apropriou da natureza e da natureza humana. É essa a sua grande vitória: ele nos shakespearizou.
Folha - O sr. não acha que pode estar sendo guiado, com esse raciocínio, não por um valor universal, como reivindica, mas por critérios específicos de um determinado momento e lugar?
Bloom - Não. Tenho informações de pessoas do mundo inteiro, indonésios, chineses, indianos, gente de Ulan Bator, na Mongólia, da Romênia, da Argentina, que viram Shakespeare ser montado em diversas línguas, e mesmo aqueles nessas platéias que nunca leram Shakespeare antes ficam convencidos de que ele os colocou no palco. Como é que você pode dizer que meus critérios são estreitos?
Folha - Não estou dizendo que os seus critérios são estreitos, mas que podem ser específicos. Por exemplo: o sr. diz que, quando pensamos nas paixões shakespearianas, pensamos em famílias. Mas a família tem sido nas últimas décadas uma obsessão particular dos escritores americanos. Quase todo primeiro romance americano nos últimos anos é sobre famílias...
Bloom - Deixe-me interrompê-lo. Todas as sociedades humanas, ao longo da história, em todas as culturas que conhecemos, para além de períodos históricos, de raça, de línguas, tudo na história da humanidade nos ensina que, no fim, haverá sempre a família. Isso é universal. Refuto com veemência que exista algo de particularmente americano no meu livro. Esse é o argumento do que eu chamo de "escola do ressentimento".
Folha - Mas se, de fato, como o sr. defende, não podemos inventar Shakespeare, mas somos inventados por ele, então o seu livro, que é obviamente uma tentativa de inventar o seu próprio Shakespeare, torna-se um paradoxo.
Bloom - Como é possível no ano de 1998 publicar um livro que não seja um paradoxo? Obviamente, estou preso a um momento e a um lugar específicos; estou preso a uma luta feroz contra o que vejo como uma tragédia cultural, que é a destruição dos parâmetros estéticos no ensino da literatura nos países de língua inglesa -e cada vez mais nos países de língua espanhola e portuguesa. Posso cair na armadilha desse paradoxo, mas tenho consciência disso.
Folha - O sr. chama de "escola do ressentimento" aqueles que põem a teoria na frente da literatura...
Bloom - Ou seja, com poucas exceções, todos os críticos hoje no mundo ocidental. São quase todos ideólogos. Feministas que não são feministas. Dizem-se marxistas, mas não são marxistas. Dizem-se seguidores de um ou outro profeta parisiense, mas então nem críticos são. O interesse deles não é estético. Não gostam de Shakespeare. Têm rancor de Shakespeare. Chegamos a um ponto absurdo em que alguém que acredita, como eu, que um grande romance como "Meridiano de Sangue", de Cormac McCarthy, é superior a, por exemplo, "Beloved", de Tony Morrison, a meu ver literatura de supermercado, passa a ser visto como um conservador.
Folha - O sr. reivindica para Shakespeare um lugar acima da história, alegando que ele não se encaixa nos arquivos de Foucault...
Bloom - O que você quer dizer com acima da história?! Você está se referindo a "História", com agá maiúsculo. Eu estou falando da história da teoria, da escola do ressentimento, dos pseudo-marxistas! Ninguém está acima da História, nem Shakespeare. Mas a força do valor estético pode estar menos para além da história do que ser a própria história. Existe a verdadeira história imaginativa e existe a falsa história. O valor de Shakespeare pertence à primeira.
Como dizia Blake, não vou entregar a história aos acusadores. Eu, Harold Bloom, não vou entregar a história aos representantes do historicismo. Foucault para mim não é um deus; é só mais um demônio.
Folha - Para mim não é uma coisa nem outra. Mas me parece curioso que o título do seu livro ("A Invenção do Humano") lembre uma das principais idéias de Foucault em "As Palavras e as Coisas". Foucault mostra que a noção de humano, do homem tal qual nós o conhecemos hoje, não existiu sempre, mas foi criada a partir de um certo estágio da história da humanidade e das ciências. É interessante que, embora atacando Foucault, o sr. parece, talvez inconscientemente, se inspirar nas idéias dele.
Bloom - Não concordo com Foucault e não concordo com você. O entendimento adequado de Shakespeare nos mostra que a concepção do homem está profundamente enraizada na história humana. Quando falo da "invenção do humano", estou pressupondo que Shakespeare tomou a concepção do humano tal qual a recebeu de Chaucer, da Bíblia inglesa, e a transcendeu, para reinventá-la e torná-la mais próxima do que somos hoje. Não acredito, como Foucault, que sejamos vítimas de um processo. Acredito na liberdade humana, tal como Shakespeare.
Folha - Mas o sr. diz que a personalidade humana foi criada em um certo momento, por um certo autor, no caso, Shakespeare...
Bloom - Não, não, não. Não estou dizendo isso. Isso seria uma terrível redução. Estou levantando a possibilidade imaginativa de que uma boa parte do que vemos como a personalidade humana é uma invenção ou reinvenção shakespeariana. Citando Oscar Wilde, diria que a influência de Shakespeare sobre a vida é ainda maior do que a influência da vida sobre Shakespeare. Ele modificou profundamente a nossa noção de personalidade humana. O título do meu livro não deve ser levado ao pé da letra. É uma metáfora. Invenção é a essência da poesia. Shakespeare é o maior de todos os poetas.
Folha - O sr. faz grandes esforços para ter uma leitura shakespeariana de Shakespeare, livre de todos os vícios teóricos atuais, mas ao mesmo tempo tenta explicar várias passagens das peças por meio de uma especulação sobre a psicologia do autor. O sr. acha que a explicação psicológica está para além desses vícios teóricos?
Bloom - Meu caro, você deve lembrar do capítulo "Freud, Uma Leitura Shakespeariana" do meu livro "O Cânone Ocidental". Não acho que eu faça uma leitura freudiana de Shakespeare.
Folha - Não estou falando de psicanálise. Mas a sua leitura shakespeariana de Shakespeare me parece se pautar pela psicologia.
Bloom - Não sabemos quase nada da vida de Shakespeare. Faço suposições nesse livro. Para mim, o livro é uma interpretação útil das peças, um auxílio ao leitor. Ao ler as provas, me dei conta de que, de certa forma, tinha escrito uma espécie de biografia especulativa de Shakespeare. Só o tempo dirá a validade desse procedimento.
Folha - O sr. citou o seu "O Cânone Ocidental". O sr. escreveu um cânone ocidental baseado apenas no que havia disponível no mercado literário de língua inglesa...
Bloom - Espere aí. Você quer brigar, vamos brigar. Tenha muito cuidado. Não endosso a lista e não quero discuti-la. Gostaria que a lista fosse retirada de todas as traduções do livro. Eu estava considerando o interesse de leitores de língua inglesa. A lista não foi idéia minha. Ela não é o livro.
Folha - Mas o sr. não acha um tanto arriscado publicar um livro chamado "O Cânone Ocidental" e deixar de fora alguns títulos fundamentais por não terem sido publicados em inglês?
Bloom - Espere um momento! Sou um velho afável e gentil. Tento não ser polêmico. Gostaria que você fosse um pouco mais gentil comigo. Todos temos nossas limitações. Faço o melhor que posso. E não gostaria de ser atacado por coisas que não fiz ou que não foram entendidas. Não sou uma autoridade em literatura portuguesa ou brasileira e não pretendo ser. Tenho sido muito atacado e estou cansando de controvérsia.
Meu maior interesse na vida é tornar Shakespeare e outros escritores que conheço a fundo mais acessíveis. Não tenho nada a ver com lutas ou discussões teóricas. Acredito que há uma tragédia cultural pelo menos no mundo de língua inglesa. Nas universidades, os grandes autores ocidentais foram substituídos por ideologia. Não sou um teórico da literatura. Não acredito em teoria.
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Livro: Shakespeare - The Invention of the Human
Autor: Harold Bloom
Lançamento: Riverhead Books
Quanto: US$ 35 (745 páginas)
Onde encomendar: www.amazon.com





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