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Crítica/"Um Concerto em Tom de Conversa"
Complexidade do real marca diálogo de escritora e cineasta
Bessa-Luís e Manoel de Oliveira conversam em volume organizado por Aniello Avella
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"Os comentários à
obra de um grande
artista não passam
de vaidosas maneiras de o interromper", diz Agustina Bessa-Luís ao apresentar Manoel
de Oliveira. Ao longo do diálogo
que entretêm, reproduzido em
"Um Concerto em Tom de
Conversa", a escritora insistirá
nesse aspecto: é como se a criação exigisse respeito e pudesse
se deixar destruir, como a mosca azul do poema de Machado
de Assis, quando dissecada.
No entanto, são dois artistas
que se encontram, nesse volume organizado por Aniello Angelo Avella, titular de literatura
portuguesa e brasileira na Universidade de Roma Tor Vergara. O livro tem por centro o diálogo já visto em "Conversa no
Porto" (2006), dirigido por Daniele Segre, entre o cineasta e a
romancista. Muito importante,
trata-se de uma conversa entre
dois amigos com intimidade
suficiente para não se respeitarem excessivamente.
Isso permite que o diálogo
deslize de um assunto a outro
de maneira suave, sem preocupação com uma pauta e também sem a preocupação de se
mostrarem inteligentes um ao
outro. Em especial Agustina se
mostra pouquíssimo interessada em uma busca conceitual.
"Eu não sei nada!", diz ela a
horas tantas. "Sei pouquíssimo.
Sou muito limitada! Quando
começo a escrever um livro
com um tema histórico, por
exemplo, eu documento-me o
mais que posso, leio e releio os
livros (...) Mas logo depois esqueço tudo. É como estudar para um exame."
É interrompida por um atônito Manoel de Oliveira: "Mas
estamos a falar sobre o quê?".
"Da criação." "Estamos a falar
de uma coisa que nós temos, da
matéria que temos cá somada
ao longo do tempo. E agora vem
dizer que não tem nada a dizer?", pergunta Oliveira. Nisso,
Agustina muda de assunto.
Eles não se respeitam, talvez
porque a amizade esteja além
do respeito: trata-se de um espaço em que a discórdia pode se
manifestar sem provocar ferimentos. Assim, Oliveira julga
severamente os cientistas, que
se julgam criadores e não criaturas e, com isso, produzem
coisas como a bomba atômica.
Já Bessa-Luís lança a eles um
olhar mais generoso: "Acho que
o criador ou o cientista está
sempre a procurar algo que seja
útil à humanidade".
O essencial da reflexão que
desenvolvem em comum gira
em torno de questões sugeridas
pelo próprio trabalho.
Limitações do cinema
Para Oliveira, "não há nada
como o cinema que simule melhor a vida real (...) Todavia não
é a expressão mais rica possível
do homem". O cinema está preso ao real e ao tempo presente,
enquanto o escritor é livre para
fazer o que quiser: "O cinema
não pode filmar pensamentos,
nem o passado, ele não tem
imagens para isso".
Para Oliveira, a ficção "é uma
imitação da realidade". "Mas",
responde Agustina, "não se pode fugir à realidade". Com efeito, escreve Aniello Angelo Avella na introdução do volume, se
o "cerne da estética de Agustina
gira em torno da complexidade
do "real'", certamente não é por
acaso que Oliveira filmou vários de seus romances (alguns
encomendados à autora). Também para ele colocar a câmera e
perceber que por todos os outros ângulos o real lhe escapa é
motivo de angústia constante.
Agustina, "boa aluna em história", gostava dessa "disciplina
indisciplinada" sobretudo porque aquilo que a história nos
transmite é cheio de mentiras
cujo objetivo consiste em evitar
que se saiba o que se passou.
É nesse hiato entre o que
aconteceu e as mentiras narradas que entra sua escrita: "não
me considero uma ficcionista,
na medida em que sou uma investigadora, como se eu fosse
uma criminalista".
No fim, Agustina parece uma
artista mais plenamente reconciliada com a vida e com sua língua do que Oliveira, para quem
"um soldado encontra a sua
glória na vitória. O comerciante
encontra sua glória nos lucros.
Mas o artista não tem glória.
Não há nada que lhe garanta isso". Já o que torna Agustina feliz "depois de muitos anos de
trabalho nas letras, é que, como
última inocência, a gratidão se
abraça com o mundo". Uma
gratidão que Manoel de Oliveira não pôde sentir ainda em seu
país. O mundo do cinema talvez
seja ainda mais incerto e injusto que o das letras.
UM CONCERTO EM TOM DE CONVERSA
Organização: Aniello Angelo Avella
Editora: UFMG
Quanto: R$ 31 (114 págs.)
Avaliação: ótimo
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