São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2008

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Crítica/"Um Concerto em Tom de Conversa"

Complexidade do real marca diálogo de escritora e cineasta

Bessa-Luís e Manoel de Oliveira conversam em volume organizado por Aniello Avella

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Os comentários à obra de um grande artista não passam de vaidosas maneiras de o interromper", diz Agustina Bessa-Luís ao apresentar Manoel de Oliveira. Ao longo do diálogo que entretêm, reproduzido em "Um Concerto em Tom de Conversa", a escritora insistirá nesse aspecto: é como se a criação exigisse respeito e pudesse se deixar destruir, como a mosca azul do poema de Machado de Assis, quando dissecada.
No entanto, são dois artistas que se encontram, nesse volume organizado por Aniello Angelo Avella, titular de literatura portuguesa e brasileira na Universidade de Roma Tor Vergara. O livro tem por centro o diálogo já visto em "Conversa no Porto" (2006), dirigido por Daniele Segre, entre o cineasta e a romancista. Muito importante, trata-se de uma conversa entre dois amigos com intimidade suficiente para não se respeitarem excessivamente.
Isso permite que o diálogo deslize de um assunto a outro de maneira suave, sem preocupação com uma pauta e também sem a preocupação de se mostrarem inteligentes um ao outro. Em especial Agustina se mostra pouquíssimo interessada em uma busca conceitual.
"Eu não sei nada!", diz ela a horas tantas. "Sei pouquíssimo.
Sou muito limitada! Quando começo a escrever um livro com um tema histórico, por exemplo, eu documento-me o mais que posso, leio e releio os livros (...) Mas logo depois esqueço tudo. É como estudar para um exame."
É interrompida por um atônito Manoel de Oliveira: "Mas estamos a falar sobre o quê?".
"Da criação." "Estamos a falar de uma coisa que nós temos, da matéria que temos cá somada ao longo do tempo. E agora vem dizer que não tem nada a dizer?", pergunta Oliveira. Nisso, Agustina muda de assunto.
Eles não se respeitam, talvez porque a amizade esteja além do respeito: trata-se de um espaço em que a discórdia pode se manifestar sem provocar ferimentos. Assim, Oliveira julga severamente os cientistas, que se julgam criadores e não criaturas e, com isso, produzem coisas como a bomba atômica.
Já Bessa-Luís lança a eles um olhar mais generoso: "Acho que o criador ou o cientista está sempre a procurar algo que seja útil à humanidade".
O essencial da reflexão que desenvolvem em comum gira em torno de questões sugeridas pelo próprio trabalho.

Limitações do cinema
Para Oliveira, "não há nada como o cinema que simule melhor a vida real (...) Todavia não é a expressão mais rica possível do homem". O cinema está preso ao real e ao tempo presente, enquanto o escritor é livre para fazer o que quiser: "O cinema não pode filmar pensamentos, nem o passado, ele não tem imagens para isso".
Para Oliveira, a ficção "é uma imitação da realidade". "Mas", responde Agustina, "não se pode fugir à realidade". Com efeito, escreve Aniello Angelo Avella na introdução do volume, se o "cerne da estética de Agustina gira em torno da complexidade do "real'", certamente não é por acaso que Oliveira filmou vários de seus romances (alguns encomendados à autora). Também para ele colocar a câmera e perceber que por todos os outros ângulos o real lhe escapa é motivo de angústia constante.
Agustina, "boa aluna em história", gostava dessa "disciplina indisciplinada" sobretudo porque aquilo que a história nos transmite é cheio de mentiras cujo objetivo consiste em evitar que se saiba o que se passou.
É nesse hiato entre o que aconteceu e as mentiras narradas que entra sua escrita: "não me considero uma ficcionista, na medida em que sou uma investigadora, como se eu fosse uma criminalista".
No fim, Agustina parece uma artista mais plenamente reconciliada com a vida e com sua língua do que Oliveira, para quem "um soldado encontra a sua glória na vitória. O comerciante encontra sua glória nos lucros.
Mas o artista não tem glória.
Não há nada que lhe garanta isso". Já o que torna Agustina feliz "depois de muitos anos de trabalho nas letras, é que, como última inocência, a gratidão se abraça com o mundo". Uma gratidão que Manoel de Oliveira não pôde sentir ainda em seu país. O mundo do cinema talvez seja ainda mais incerto e injusto que o das letras.


UM CONCERTO EM TOM DE CONVERSA
Organização:
Aniello Angelo Avella
Editora: UFMG
Quanto: R$ 31 (114 págs.)
Avaliação: ótimo


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