São Paulo, Terça-feira, 12 de Janeiro de 1999
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As duas faces de Paul Auster


Cultuado escritor e já badalado cineasta norte-americano fala sobre sua obra; mna proxima semana, chagam ao Brasil o filme "O Mistério de Lulu" e nova tradução do livro "A Trilogia de Nova York"


CECÍLIA SAYAD
da Redação

Paul Auster era um nome pouco conhecido antes do surgimento das histórias reunidas no livro "A Trilogia de Nova York".
Agora, reputado escritor, ganha fama também como cineasta, com a direção de "O Mistério de Lulu" ("Lulu on the Bridge").
O Brasil conhece na próxima semana, portanto, os primeiros passos de um artista consagrado, com o relançamento do livro (dia 18) e a estréia do filme (dia 22).
A "Trilogia", que sai agora pela Companhia das Letras, traz os trabalhos que fizeram a fama do americano, hoje com 51 anos de idade, como romancista. "Queria escrever um romance em que a linguagem fosse tão transparente que o leitor se sentisse dentro do livro", diz o autor, que iniciou sua carreira como tradutor, poeta e ensaísta.
"Quando se acaba um filme, a vida parece chata", confessa o Auster diretor, cujo "O Mistério de Lulu", apesar de não ser seu primeiro contato com o cinema (ele escreveu os roteiros de "Cortina de Fumaça" e de "Sem Fôlego", que co-dirigiu com Wayne Wang), marca sua estréia como cineasta.
Paul Auster falou à Folha por telefone de sua casa no Brooklin, em Nova York, em duas ocasiões, num intervalo de um mês.

O livro e o filme
"A Trilogia de Nova York" é composta por três histórias ("Cidade de Vidro", "Fantasmas" e "O Quarto Fechado") que foram publicadas, nos anos 80, separadamente. Depois, foram reunidas em um único volume, por abordarem uma mesma temática e desenvolverem uma mesma espécie de intriga (veja texto à pág. 4-5).
"Cidade de Vidro", a primeira delas, foi inspirada por um telefonema feito ao autor e que ele reproduz no livro, no qual, aliás, se coloca como personagem.
"O Mistério de Lulu", por sua vez, é ainda inédito nos EUA, mas já estreou na Europa e no Japão.
Feito no ano passado, traz no elenco Harvey Keitel e Mira Sorvino (veja texto nesta página).
A seguir, as idéias de Auster sobre literatura, cinema e América.

Folha - É verdade que "Cidade de Vidro", a primeira história da "Trilogia", foi inspirada por um telefonema que era engano?
Paul Auster - É. Procuravam uma agência de detetives (risos).
Folha - Você pensou em dizer que era um detetive, como fez Quinn, o personagem do livro?
Auster - Isso só me ocorreu depois que desliguei. Ainda espero que liguem de novo para fazê-lo.
Folha - Nessa história, Quinn, ao fingir que é o detetive procurado com o telefonema, usa o seu nome, Paul Auster, como se estivesse assumindo a identidade do autor. Normalmente, o personagem é que é a máscara do autor. Você quis inverter os papéis?
Auster - Sempre tive interesse em saber o que ler o nome de um escritor na capa de um livro significa. Você lê, por exemplo, Herman Melville. Aí, abre o livro e começa a ler. Alguém está falando com você, mas não é Melville, é um autor chamado Melville. Não o homem Melville. Decidi explorar a idéia de colocar o nome que vai na capa do livro dentro dele e fazer do autor um personagem -porque, ainda que o personagem chamado Auster se pareça comigo, não sou eu. Discordo de tudo o que ele diz (risos).
Folha - A atividade do escritor pode ser comparada à do ator no que diz respeito à relação do artista com o personagem?
Auster - Sempre pensei nisso. Ao trabalhar com atores em "O Mistério de Lulu", notei que há muitos paralelos entre eles e os escritores. Ambos têm de dar vida a pessoas imaginárias. O trabalho de exploração é o mesmo -você tem de conhecer os personagens intimamente. Como escritor, acho que todos os personagens vêm de mim. O mesmo pode valer para um ator.
Folha - Acontece de os pensamentos dos personagens serem completamente estranhos a você?
Auster - Com certeza. Escrever romances é uma ótima oportunidade para explorar contradições. Não há necessidade de ser coerente. Se tenho idéias diferentes sobre algo, coloco o personagem A assumindo uma posição e o personagem B assumindo outra.


"Usei pseudônimo porque não tinha a ver com meu trabalho. Queria ganhar dinheiro"

Folha - Você já escreveu sob um pseudônimo: Paul Benjamin. Isso pode ser comparado a proteger-se por detrás de um personagem?
Auster - Sim. Foi uma experiência estranha e prazerosa. É divertido fingir que sou outra pessoa, esconder-me, ficar invisível. Mas essa não foi a razão pela qual decidi usar um pseudônimo. Na verdade, escrevi um livro que não tinha nada a ver com o meu trabalho, queria ganhar dinheiro rápido.
Folha - A palavra é uma questão importante nas histórias da "Trilogia", especialmente em "Cidade". Você acredita, como é dito no livro, que elas não se referem mais ao mundo real?
Auster - "Cidade" propõe que a linguagem seja destruída. Não se pode fazer isso. A linguagem nos fornece estruturas para organizarmos pensamentos. Não se pode ter uma palavra para cada coisa no universo, como o personagem do livro quer. Nada teria significado. As palavras são imprecisas, mas são tudo o que temos. Devemos tentar utilizá-las de forma precisa.
Folha - Você sente que as palavras não dão conta de exprimir suas idéias, ou que as distorcem?
Auster - Elas certamente distorcem as coisas. Como escritor, cometo erros e procuro corrigi-los.
Folha - Com relação aos personagens das três histórias, eles vivem em uma espécie de vazio, seguido de um processo de identificação que leva à morte. Essa identificação significa a perda de algo?
Auster - Provavelmente... Não saberia como responder.
Folha - Como escritor, você se perde nos personagens?
Auster - Sim, identifico-me com o personagem a tal ponto que ele se torna real e me transformo nele.
Folha - E esse processo envolve alguma perda?
Auster - Não, acho que ganho um outro aspecto de mim mesmo.
Folha - Então, por que um dos personagens do livro sempre morre, como em "Fantasmas" e "O Quarto Fechado"?
Auster - Bem, os personagens estão envolvidos em uma grande luta. É questão de vida ou morte, não acho que haja espaço para ambos.
Folha - O escritor Henry David Thoreau (1817-1862) é muito presente em sua literatura. O que ele significa para você?
Auster - Thoreau foi um dos maiores prosadores dos EUA e um dos primeiros a questionar as bases da sociedade americana. Também inventou a idéia da desobediência civil -inclusive esse é o nome de uma de suas obras-, da resistência pacífica. Não se pode imaginar Gandhi sem Thoreau, nem Martin Luther King.
Folha - O que está lendo agora?
Auster - Tenho lido Hawthorne. Suas cartas, seus contos.
Folha - Lê seus próprios livros?
Auster - Não, não consigo.
Folha - Como situaria a "Trilogia" no conjunto de sua obra?
Auster - Trata-se de meus primeiros romances. Eu explorava os problemas que escrever romances apresenta. São o começo de tudo.
Folha - Foram seus primeiros trabalhos em prosa. O que a passagem da poesia à prosa significou?
Auster - Foi como ter duas vidas como escritor. Antes, havia um poeta, que morreu. Depois, nasceu um novo autor, que fazia prosa.
Folha - Fale sobre seu novo livro.
Auster - Chama-se "Timbuktu" (Timbuctu, no Mali), que é uma metáfora para o fim do mundo. Deve sair nos EUA em maio. O personagem é um cachorro.
Folha - Por que um cachorro?
Auster - Não saberia responder. Talvez cães mexam comigo pela sua pureza. Trata-se de uma história de amor, e eu queria contá-la de maneira apaixonada, sem cinismos ou ironias. Queria algo puro.
Folha - Passando a "O Mistério de Lulu". Para um escritor, qual é o maior desafio em fazer cinema?
Auster - Buscar um olhar novo, pensar de uma maneira visual.
Folha - Trabalhar em grupo afeta a sua escrita?
Auster - A escrita não, porque trabalho o roteiro sozinho.
Folha - Mas é necessário considerar, por exemplo, a viabilidade de transpor o que escreve para a tela?
Auster - Quando estava escrevendo, não. Uma vez satisfeito com o texto, comecei a filmar, e foi então que essas questões surgiram.
Folha - Os atores o surpreenderam, dando aos seus papéis aspectos nos quais não havia pensado?
Auster - Acho que todos os atores fizeram coisas que eu não esperava. Nisso consiste o prazer de trabalhar em filmes.


"(Quando escrevo) nunca sei o que vai acontecer, idéias surgem no processo"

Folha - Esse tipo de surpresa existe quando escreve um livro?
Auster - O tempo todo. Nunca tenho certeza do que vai acontecer, novas idéias surgem no processo de escrita. A mesma coisa acontece com filmes: surgem idéias no set.
Folha - De que forma a definição do ponto de vista sob o qual uma história é contada difere quando faz um filme e escreve um livro?
Auster - No filme, a câmera está contando a história. Quando estava no set, imaginava que a câmera e as luzes eram como a tinta (risos). Pois servem a um mesmo propósito -dar vida a coisas imaginárias. No livro, temos palavras. No filme, temos pessoas se movendo sobre uma tela bidimensional. Tudo é artifício. Os instrumentos e a linguagem são diferentes, mas o esforço é o mesmo.
Folha - Quando escreve, espera que o público se envolva totalmente com a história ou que mantenha um distanciamento crítico?
Auster - Espero que se envolva completamente. Neste filme, especificamente, quis que o público tivesse uma experiência forte. Depois, quando vai para casa, pode pensar sobre o que viu. Com livros gostaria que fosse a mesma coisa. Queria escrever um romance em que a linguagem fosse tão transparente que o leitor se sentisse dentro do livro, e não lendo.
Folha - Sua obra é marcada pela presença de acontecimentos inesperados que transformam a vida dos personagens. Você os vê como acaso ou destino?
Auster - Depende da história. Tendo a não pensar em destino. Não acredito que as coisas sejam predeterminadas. Nossas vidas estão em constante transformação. São uma combinação de desejos, do que planejamos e de coisas inesperadas, que poderíamos chamar de acaso.
Folha - Apesar da universalidade do tema que abordam, alguns de seus livros são marcadamente americanos. As questões relativas à identidade que abordam dizem respeito à nacionalidade?
Auster - Em "Palácio da Lua" e "Mr. Vertigo", sim. Na maioria dos meus livros, aliás, isso é verdade.
Folha - A questão da nacionalidade é importante para você?
Auster - Não, o que me interessa é o exame de uma cultura. É o que todos os escritores fazem. Todos vêm de algum lugar, é sobre esse lugar que escrevem.
Folha - Os americanos e europeus diferem muito na maneira de abordar essa questão?
Auster - Com certeza, pois os EUA são um país inventado. Não sabemos exatamente quem somos. Com os brasileiros deve acontecer o mesmo, não? Enquanto um francês não tem de pensar sobre isso, ele sabe que é francês e pronto.


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