São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LITERATURA
Versão de "Hamlet" de Updike não é Shakespeare

MICHIKO KAKUTANI
do "The New York Times"


Os dois últimos esforços de John Updike para trabalhar sobre variações de histórias clássicas foram pontos baixos em uma carreira deslumbrante. "Brasil" (1994) transformava a lenda de Tristão e Isolda em uma novela caricata, cheia de estereótipos sexuais e raciais; e "S" (1988) fazia de "A Letra Escarlate", de Nathanael Hawthorne, uma sátira amarga e sobrecarregada de clichês ao movimento feminista. O mais recente projeto de renovação literária de Updike obteve consideravelmente mais sucesso. Ao escrever uma espécie de intróito a "Hamlet" que conta a história da mãe do príncipe melancólico, ele saiu-se bem na criação de um de seus personagens femininos mais convincentes e simpáticos até hoje.
Ao fazê-lo, porém, Updike oferece ao leitor uma visão decididamente distorcida dos personagens da peça de Shakespeare. "Gertrude and Claudius" se assemelha muitas vezes a uma das histórias de ciúme e adultério suburbanos de Updike, em roupas de época. É menos um improviso brincalhão à maneira de "Rosencrantz e Guildenstern", de Tom Stoppard, do que um simples roubo dos personagens e enredo shakespearianos para servir aos objetivos de Updike.
Da forma como Updike conta a história, Gertrude (ou Gerutha, ou Geruthe, como é chamada aqui) é uma mulher gentil, se bem que um pouco fácil de iludir, que se apaixona loucamente pelo sexy irmão mais novo de seu marido. O personagem do rei Hamlet é um sujeito sólido, autocentrado, mais preocupado com o trabalho do que com a mulher. Claudius é um aventureiro galante, ciumento do poder de seu irmão mais velho. Hamlet é um fedelho mimado e mal comportado, que zomba e escapa ao controle de sua mãe muito antes de descobrir o adultério dela.
Baseado parcialmente em fontes que Shakespeare mesmo provavelmente usou, o romance de Updike se passa numa Idade Média fictícia, em um momento em que "Cristo" estava em todos os lábios, mas os dinamarqueses no fundo ainda adoravam Tyr, o deus dos esportes, da guerra e da fertilidade.
Em "Gertrude and Claudius", Updike emprega seus consideráveis poderes de persuasão para transformar a mulher que Hamlet acusa de luxúria indevida (vivendo "no suor amargo de uma cama conspurcada/ Férvida na corrupção, fazendo doce amor/ Sobre um chiqueiro imundo") em uma romântica moderna, que encontra o verdadeiro amor nos braços do irmão do marido.
No passado, os esforços de Updike para escrever do ponto de vista feminino tenderam a resultar em heroínas que são pouco mais do que caricaturas. Todas as três "Bruxas de Eastwick" eram paródias risíveis do feminismo, enquanto a heroína de "S" era uma mulher amarga que detestava os homens e dava mais valor aos seus caprichos egoístas do que a sua família. Já o retrato de Gertrude que ele compõe, em contraste, se define pela dialética entre liberdade e dever, paixão e domesticidade.
O relacionamento de Gertrude com seu filho é complicado. Esse Hamlet não é o príncipe modelo de Shakespeare -"a esperança e rosa da justiça"-, cuja "nobre mente" se deixa desarranjar pela dor causada pela morte de seu pai e pelo segundo casamento da mãe. Em lugar disso, ele é uma criança "agitada e de língua ferina, desrespeitoso para com os mais velhos e insultuoso para com os inferiores".
Seu amor pelo filho, pensa Gertrude, se derrama sobre Hamlet mas permanece "na superfície, brilhando como gotas de mercúrio, jamais absorvido". Ele a faz sentir-se um "completo fracasso como mãe".
Gertrude lentamente começa a sentir que "jamais viveu" para si, e em sua busca de realização compreende que Claudius, o charmoso irmão mais novo de seu marido, é o companheiro com quem sempre sonhou.
Quando o rei descobre o caso entre eles, Claudius -sem que Gertrude saiba- planeja o assassinato do irmão. Ele o envenena a sangue frio, assume o trono e casa-se com sua viúva. E assim temos o palco preparado para a abertura da peça de Shakespeare.
Updike não culpa Claudius por precipitar esses eventos que conduzirão à sangrenta conclusão de Hamlet. Em lugar disso, culpa Hamlet por decidir vingar seu pai. Em um posfácio, ele escreve que "se descontarmos o fato de que o assassinato foi encoberto, Claudius parece ser um rei bastante capaz, Gertrude uma rainha nobre, Ofélia um tesouro de doçura, Polonius um conselheiro tedioso mas não maligno, Laertes um jovem genérico. Hamlet os arrasta todos à morte".
"Se descontarmos o fato de que o assassinato foi encoberto" é uma exceção bastante considerável, poderia protestar o leitor, mas Updike, neste livro, parece determinado não a reinventar a peça de Shakespeare -ou comentá-la-, mas em contar uma história de ciúme sexual e discórdia marital não muito diferente das que ele já contou tantas vezes no passado.


Tradução Paulo Migliacci

Livro: Gertrude and Claudius Autor: John Updike Editora: Knopf Quanto: US$ 16,10 (208 págs.) Onde encontrar: www.amazon.com

Texto Anterior: Moda: Semana termina revivendo anos 80
Próximo Texto: Resenha da Semana - Bernardo Carvalho: Situação do romance
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.