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LITERATURA
Versão de "Hamlet" de Updike não é Shakespeare
MICHIKO KAKUTANI
do "The New York Times"
Os dois últimos
esforços de John
Updike para trabalhar sobre variações
de histórias clássicas foram pontos
baixos em uma carreira deslumbrante. "Brasil" (1994) transformava a lenda de Tristão e Isolda
em uma novela caricata, cheia de
estereótipos sexuais e raciais; e
"S" (1988) fazia de "A Letra Escarlate", de Nathanael Hawthorne,
uma sátira amarga e sobrecarregada de clichês ao movimento feminista. O mais recente projeto
de renovação literária de Updike
obteve consideravelmente mais
sucesso. Ao escrever uma espécie
de intróito a "Hamlet" que conta
a história da mãe do príncipe melancólico, ele saiu-se bem na criação de um de seus personagens
femininos mais convincentes e
simpáticos até hoje.
Ao fazê-lo, porém, Updike oferece ao leitor uma visão decididamente distorcida dos personagens da peça de Shakespeare.
"Gertrude and Claudius" se assemelha muitas vezes a uma das
histórias de ciúme e adultério suburbanos de Updike, em roupas
de época. É menos um improviso
brincalhão à maneira de "Rosencrantz e Guildenstern", de Tom
Stoppard, do que um simples
roubo dos personagens e enredo
shakespearianos para servir aos
objetivos de Updike.
Da forma como Updike conta a
história, Gertrude (ou Gerutha,
ou Geruthe, como é chamada
aqui) é uma mulher gentil, se bem
que um pouco fácil de iludir, que
se apaixona loucamente pelo sexy
irmão mais novo de seu marido.
O personagem do rei Hamlet é
um sujeito sólido, autocentrado,
mais preocupado com o trabalho
do que com a mulher. Claudius é
um aventureiro galante, ciumento do poder de seu irmão mais velho. Hamlet é um fedelho mimado e mal comportado, que zomba
e escapa ao controle de sua mãe
muito antes de descobrir o adultério dela.
Baseado parcialmente em fontes que Shakespeare mesmo provavelmente usou, o romance de
Updike se passa numa Idade Média fictícia, em um momento em
que "Cristo" estava em todos os
lábios, mas os dinamarqueses no
fundo ainda adoravam Tyr, o
deus dos esportes, da guerra e da
fertilidade.
Em "Gertrude and Claudius",
Updike emprega seus consideráveis poderes de persuasão para
transformar a mulher que Hamlet
acusa de luxúria indevida (vivendo "no suor amargo de uma cama
conspurcada/ Férvida na corrupção, fazendo doce amor/ Sobre
um chiqueiro imundo") em uma
romântica moderna, que encontra o verdadeiro amor nos braços
do irmão do marido.
No passado, os esforços de Updike para escrever do ponto de
vista feminino tenderam a resultar em heroínas que são pouco
mais do que caricaturas. Todas as
três "Bruxas de Eastwick" eram
paródias risíveis do feminismo,
enquanto a heroína de "S" era
uma mulher amarga que detestava os homens e dava mais valor
aos seus caprichos egoístas do
que a sua família. Já o retrato de
Gertrude que ele compõe, em
contraste, se define pela dialética
entre liberdade e dever, paixão e
domesticidade.
O relacionamento de Gertrude
com seu filho é complicado. Esse
Hamlet não é o príncipe modelo
de Shakespeare -"a esperança e
rosa da justiça"-, cuja "nobre
mente" se deixa desarranjar pela
dor causada pela morte de seu pai
e pelo segundo casamento da
mãe. Em lugar disso, ele é uma
criança "agitada e de língua ferina, desrespeitoso para com os
mais velhos e insultuoso para
com os inferiores".
Seu amor pelo filho, pensa Gertrude, se derrama sobre Hamlet
mas permanece "na superfície,
brilhando como gotas de mercúrio, jamais absorvido". Ele a faz
sentir-se um "completo fracasso
como mãe".
Gertrude lentamente começa a
sentir que "jamais viveu" para si, e
em sua busca de realização compreende que Claudius, o charmoso irmão mais novo de seu marido, é o companheiro com quem
sempre sonhou.
Quando o rei descobre o caso
entre eles, Claudius -sem que
Gertrude saiba- planeja o assassinato do irmão. Ele o envenena a
sangue frio, assume o trono e casa-se com sua viúva. E assim temos o palco preparado para a
abertura da peça de Shakespeare.
Updike não culpa Claudius por
precipitar esses eventos que conduzirão à sangrenta conclusão de
Hamlet. Em lugar disso, culpa
Hamlet por decidir vingar seu pai.
Em um posfácio, ele escreve que
"se descontarmos o fato de que o
assassinato foi encoberto, Claudius parece ser um rei bastante
capaz, Gertrude uma rainha nobre, Ofélia um tesouro de doçura,
Polonius um conselheiro tedioso
mas não maligno, Laertes um jovem genérico. Hamlet os arrasta
todos à morte".
"Se descontarmos o fato de que
o assassinato foi encoberto" é
uma exceção bastante considerável, poderia protestar o leitor, mas
Updike, neste livro, parece determinado não a reinventar a peça
de Shakespeare -ou comentá-la-, mas em contar uma história
de ciúme sexual e discórdia marital não muito diferente das que ele
já contou tantas vezes no passado.
Tradução Paulo Migliacci
Livro: Gertrude and Claudius
Autor: John Updike
Editora: Knopf
Quanto: US$ 16,10 (208 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.com
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