São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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RESENHA DA SEMANA
Situação do romance

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


A idéia que Julio Cortázar (1914-84) faz da literatura é antiliterária. E isso graças a um repertório e a um senso crítico extremamente apurados, além de uma compreensão profunda do sentido mais radical do ato de escrever: "Viver importa mais do que escrever, a menos que escrever seja -como tão poucas vezes- um viver".
Uma compreensão que levou o escritor argentino a tomar, já em 48, o partido da autenticidade surrealista de Antonin Artaud (uma cosmovisão) contra a domesticação do surrealismo, transformado em apenas mais uma corrente estética, uma escola, literatura de cavalete. Ou a defender o irracionalismo na literatura do pós-guerra, quando os bem-pensantes, precursores do politicamente correto, condenavam os perigos da irracionalidade e a associavam à barbárie nazista.
Uma parte significativa desse pensamento independente, heterodoxo e por vezes polêmico, pode ser conferida no segundo volume da "Obra Crítica" do autor de "O Jogo da Amarelinha", editada pela Civilização Brasileira. Alguns desses textos já tinham sido publicados anteriormente no Brasil, numa coletânea organizada por Davi Arrigucci Jr., sob o título "Valise de Cronópio" (ed. Perspectiva). Entre eles, é especialmente esclarecedor o ensaio que trata da "Situação do Romance" (1950), precedido por "Notas sobre o Romance Contemporâneo" (1948).
Cortázar escreveu os dois no auge do existencialismo -com o qual se identificava-, sob influência do surrealismo e do impacto das experiências estéticas mais inovadoras das primeiras décadas do século. O que lhe interessava era refletir sobre as possibilidades do romance depois de a poesia ter deixado de lhe servir como mero ornamento para ser incorporada como estrutura.
Não estava falando do que se convencionou chamar de prosa poética, e que acabou por se transformar em mais um cacoete literário, mas da "obra como manifestação poética total". Ou seja, estava se referindo a um estágio em que "continuar falando de "romance" já carece de sentido". Um estágio em que, aproveitando a flexibilidade própria à forma romanesca, a narração, o poema e o teatro se combinam para responder a "um estado de intuição para o qual a realidade, seja ela qual for, só pode ser formulada poeticamente".
Para evitar mal-entendidos, o escritor dá exemplos: "As Ondas", de Virginia Woolf, "O Processo", de Kafka, "Ulisses", de Joyce e "A Morte de Virgílio", de Hermann Broch.
Partindo do pressuposto de que a linguagem é conquista do mundo pelo conhecimento -"É preciso nomear (porque nomear é aprisionar)"-, ele defende a literatura que se interpõe como dúvida nesse processo: "Tudo pode ser conhecido. Até o dia em que surge a dúvida sobre a legitimidade desse conhecimento; então a literatura favorece a revisão prévia e interna, o ajuste de instrumentos pessoais e verbais".
Por isso não é estranho que, depois de fazer o elogio de Virginia Woolf, Proust e Joyce, ainda reconheça a preponderância da crueza e da violência dos autores policiais americanos, como James Cain, Dashiell Hammett e Raymond Chandler, sobre o chamado "romance social", que ele despreza. Ou que cometa a "heresia" de pôr Hermann Broch ao lado de Henry Miller entre os principais representantes da "face mais avançada dessa linha de liberação total" do romance.
Cortázar sabe que a obra de Albert Camus, por exemplo, é mais importante que a de Dashiell Hammett. Mas em sua argumentação isso não tem grande pertinência. Porque "o que conta é a recusa de mediatizar, de enfeitar, de fazer literatura", para alcançar "uma linguagem que seja o homem em vez de -meramente- expressá-lo".
Afinal, para que se escrevem e se lêem romances? "Por duas razões: para se escapar de uma realidade ou para se opor a ela." Quando tudo parece já ter sido nomeado, e volta e meia alguém anuncia a morte da literatura, cabe ao romance se renomear, achar novos nomes que abram para o desconhecido em vez de se contentar em repetir os velhos e fazer o mero reconhecimento dos territórios conquistados.
"Tanto o vivemos que cada um desses romances nos deixa doentes, joga-nos em direção a nós mesmos, à nossa culpa. Creio que o romance que hoje importa é aquele que não foge da indagação dessa culpa; creio também que seu futuro já se anuncia em obras nas quais as trevas se tornam mais espessas para que a luz, a pequena luz que nelas tremula, brilhe melhor e seja reconhecida." Cortázar falava da situação do romance em 1950. Mas poderia dizer a mesma coisa hoje.



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Livro: Obra Crítica 2
Autor: Julio Cortázar
Organização: Jaime Alazraki
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
Lançamento: Civilização Brasileira
Preço: R$ 38 (368 págs.)


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