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RESENHA DA SEMANA
Situação do romance
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
A idéia que Julio Cortázar
(1914-84) faz da
literatura é antiliterária. E isso
graças a um repertório e a um senso crítico
extremamente apurados, além
de uma compreensão profunda do sentido mais radical do
ato de escrever: "Viver importa
mais do que escrever, a menos
que escrever seja -como tão
poucas vezes- um viver".
Uma compreensão que levou
o escritor argentino a tomar, já
em 48, o partido da autenticidade surrealista de Antonin
Artaud (uma cosmovisão)
contra a domesticação do surrealismo, transformado em
apenas mais uma corrente estética, uma escola, literatura de
cavalete. Ou a defender o irracionalismo na literatura do
pós-guerra, quando os bem-pensantes, precursores do politicamente correto, condenavam os perigos da irracionalidade e a associavam à barbárie
nazista.
Uma parte significativa desse
pensamento independente, heterodoxo e por vezes polêmico,
pode ser conferida no segundo
volume da "Obra Crítica" do
autor de "O Jogo da Amarelinha", editada pela Civilização
Brasileira. Alguns desses textos
já tinham sido publicados anteriormente no Brasil, numa coletânea organizada por Davi
Arrigucci Jr., sob o título "Valise de Cronópio" (ed. Perspectiva). Entre eles, é especialmente
esclarecedor o ensaio que trata
da "Situação do Romance"
(1950), precedido por "Notas
sobre o Romance Contemporâneo" (1948).
Cortázar escreveu os dois no
auge do existencialismo -com
o qual se identificava-, sob influência do surrealismo e do
impacto das experiências estéticas mais inovadoras das primeiras décadas do século. O
que lhe interessava era refletir
sobre as possibilidades do romance depois de a poesia ter
deixado de lhe servir como mero ornamento para ser incorporada como estrutura.
Não estava falando do que se
convencionou chamar de prosa poética, e que acabou por se
transformar em mais um cacoete literário, mas da "obra
como manifestação poética total". Ou seja, estava se referindo
a um estágio em que "continuar falando de "romance" já
carece de sentido". Um estágio
em que, aproveitando a flexibilidade própria à forma romanesca, a narração, o poema e o
teatro se combinam para responder a "um estado de intuição para o qual a realidade, seja
ela qual for, só pode ser formulada poeticamente".
Para evitar mal-entendidos, o
escritor dá exemplos: "As Ondas", de Virginia Woolf, "O
Processo", de Kafka, "Ulisses",
de Joyce e "A Morte de Virgílio", de Hermann Broch.
Partindo do pressuposto de
que a linguagem é conquista do
mundo pelo conhecimento
-"É preciso nomear (porque
nomear é aprisionar)"-, ele
defende a literatura que se interpõe como dúvida nesse processo: "Tudo pode ser conhecido. Até o dia em que surge a
dúvida sobre a legitimidade
desse conhecimento; então a literatura favorece a revisão prévia e interna, o ajuste de instrumentos pessoais e verbais".
Por isso não é estranho que,
depois de fazer o elogio de Virginia Woolf, Proust e Joyce,
ainda reconheça a preponderância da crueza e da violência
dos autores policiais americanos, como James Cain, Dashiell
Hammett e Raymond Chandler, sobre o chamado "romance social", que ele despreza. Ou
que cometa a "heresia" de pôr
Hermann Broch ao lado de
Henry Miller entre os principais representantes da "face
mais avançada dessa linha de
liberação total" do romance.
Cortázar sabe que a obra de
Albert Camus, por exemplo, é
mais importante que a de Dashiell Hammett. Mas em sua argumentação isso não tem grande pertinência. Porque "o que
conta é a recusa de mediatizar,
de enfeitar, de fazer literatura",
para alcançar "uma linguagem
que seja o homem em vez de
-meramente- expressá-lo".
Afinal, para que se escrevem
e se lêem romances? "Por duas
razões: para se escapar de uma
realidade ou para se opor a
ela." Quando tudo parece já ter
sido nomeado, e volta e meia
alguém anuncia a morte da literatura, cabe ao romance se renomear, achar novos nomes
que abram para o desconhecido em vez de se contentar em
repetir os velhos e fazer o mero
reconhecimento dos territórios
conquistados.
"Tanto o vivemos que cada
um desses romances nos deixa
doentes, joga-nos em direção a
nós mesmos, à nossa culpa.
Creio que o romance que hoje
importa é aquele que não foge
da indagação dessa culpa; creio
também que seu futuro já se
anuncia em obras nas quais as
trevas se tornam mais espessas
para que a luz, a pequena luz
que nelas tremula, brilhe melhor e seja reconhecida." Cortázar falava da situação do romance em 1950. Mas poderia
dizer a mesma coisa hoje.
Avaliação:
Livro: Obra Crítica 2
Autor: Julio Cortázar
Organização: Jaime Alazraki
Tradução: Paulina Wacht e Ari
Roitman
Lançamento: Civilização Brasileira
Preço: R$ 38 (368 págs.)
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