São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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HISTÓRIA
Família e senzala

HAROLDO CERAVOLO SEREZA
da Reportagem Local


Quem leu o título acima e pensou em família como uma organização apenas branca na sociedade escravista brasileira tem bons motivos para se debruçar sobre "Na Senzala, uma Flor", do historiador Robert W. Slenes, norte-americano radicado no Brasil e professor da Unicamp. O livro é um estudo da pouca discutida questão da organização familiar dos escravos brasileiros.
Slenes combina a análise do estudo da história da escravidão no Brasil e nos EUA com uma apreciação crítica de relatos dos viajantes do século 19 e de dados demográficos, obtidos a partir de casamentos e batismos de negros escravizados no Sudeste, realizados pela Igreja Católica.
O título do livro deriva de texto do viajante Charles Ribeyrol- les. Ele afirma que, nas habitações dos escravos no Brasil, "não há famílias, apenas ninhadas". Provavelmente sob influência do economista Adam Smith, diz que a família não se organiza porque o pai "não tem interesse algum na terra, na colheita" e porque a mãe não pode estar segura de que poderá criar os filhos ("lhe podem ser tomados a qualquer momento, como os pintos ou os cabritos da fazenda"). "Nos cubículos dos negros, jamais vi uma flor: é que lá não existem nem esperanças nem recordações."
A "licenciosidade das senzalas", a idéia de que reinava um completo desregramento sexual entre os cativos, é o principal alvo de Slenes. Essa posição uniu intelectuais como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes, com diferentes perspectivas. Fernandes, por exemplo, acreditava que o sistema produtivo procurava impedir "todas as formas de solidariedade" entre os escravos, deixando-os sem regras para a conduta sexual e sem incentivos para a formação de unidades familiares ancoradas no tempo.
Slenes acredita que houve, sim, o que se pode chamar de uma família escrava, baseada em casamentos estáveis. Mostra que, em Campinas, 61,8% das mulheres cativas com 15 anos ou mais eram casadas ou viúvas (dado de 1872). Vai além: mostra que a organização dessa família era forma de resistir à dominação do fazendeiro. Organizar uma família significava alguns direitos (maior privacidade e espaço para produzir, entre outros), facilitando a acumulação de pequenas quantias.
Um exemplo dessa tensão dado por Slenes: o abolicionista Luiz Gama dirige, em 1872, requerimento pedindo medidas que garantissem a vida do escravo Serafim, morador de Jundiaí e casado com Romana, "com quem tem dois filhos menores". No ofício, Gama escreve que o proprietário de Serafim "tem pretendido violentamente prostituir a mulher do suplicante". O trecho mostra não apenas a valorização do casamento, mas o modo como ele permitia ao escravo se posicionar contra o senhor, ainda que tais "direitos" em geral não fossem respeitados.
Numa sociedade que acenava com a possibilidade de o escravo se tornar liberto, a família também servia ao senhor. A discussão recente da historiografia é definir em que medida isso se dava. "A Paz das Senzalas" (Civilização Brasileira, 1997), de Manolo Florentino e José Roberto Góes, por exemplo, defende que a família representava um "pacto" de paz entre escravos e senhores. Slenes, no entanto, acha que essa família "ambígua", com as "experiências e memórias que engendrava e transmitia", ajudava a esboçar uma consciência cativa "desestabilizadora" do sistema escravista.


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Livro: Na Senzala, uma Flor
Autor: Robert W. Slenes
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 21,87 (300 págs.)


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